Três mulheres baianas marcaram seus nomes na história da Independência do Brasil pela coragem e firmeza em proteger e emancipar os brasileiros das determinações de Portugal: Joana Angélica, Maria Felipa e Maria Quitéria. Entre 1822 e 1823 essas mulheres realizaram atos heróicos, arriscando as próprias vidas quando Portugal ansiava por manter o status colonial do Brasil.

A sóror Joana Angélica foi assassinada na porta do convento da Lapa por soldados portugueses, em 1822, após tentar impedir que entrassem em busca de militares a favor da independência. Maria Felipa, pescadora negra da Ilha de Itaparica, liderou um grupo de 40 mulheres que se organizaram para impedir as invasões portuguesas na região. É célebre o episódio em que surraram um grupo de soldados portugueses com cansanção e queimaram embarcações lusitanas.

Já a feirense Maria de Quitéria de Jesus entrou para a história por ter participado de várias batalhas na luta pela Independência após vestir-se de homem, ingressando no Regimento de Artilharia, em Cachoeira, sob o nome de “Soldado Medeiros”. Neste artigo vamos entender um pouco mais sobre a trajetória dessa que é a maior figura histórica que Feira de Santana já produziu, e, sem dúvida, uma das principais referências de afirmação da mulher que o Brasil já conheceu (se não a principal).

A infância de Maria Quitéria

Foto antiga de São José das Itapororocas

Foto antiga de São José das Itapororocas

Maria Quitéria nasceu em 1792, num pequeno sítio chamado Licorizeiro, pertencente a seus pais, Gonçalo Alves de Almeida e  Quitéria Maria de Jesus. A pequena Maria Quitéria, aos 6 anos, foi batizada na Capela de São Vicente, localizada no atual Distrito de Tiquaruçu.

Pereira Reis Junior, autor de uma das principais obras sobre a heroína, baseada em entrevistas e análises de documentos da época, descreve a infância de Maria Quitéria: “Apesar dos seus oito anos, a pequena sertaneja já demonstra curioso temperamento. Se de um lado o pai lhe reprime as travessuras, Dona Quitéria lhe suaviza as repreensões paternas com a doce afeição de quem compreende e admira as atitudes da pequena Maria. Enquanto os irmãos Josefa e Luís brincam em derredor da casa, Maria desaparece, horas a fio. Às vezes se entretém armando laços para apanhar passarinhos, sendo porém sua distração predileta percorrer o sítio num animal em pêlo”.

No ano de 1802, quando Maria Quitéria contava apenas dez anos de idade, sua mãe faleceu. Apenas 5 meses depois seu pai, Gonçalo, contrai matrimônio com outra mulher, Eugênia Maria dos Santos, que é vista inicialmente com desconfiança, mas logo ganha a afeição de Maria Quitéria e irmãos.

Pouco tempo depois, a madrasta de Maria Quitéria também adoece, falecendo e colocando novamente a família em carência afetiva. É nessa época que Gonçalo decide sair do sítio Licorizeiro para a fazenda Serra da Agulha, localizada entre São José e Tanquinho.

Quando Maria Quitéria contava 12 anos, seu pai casa novamente, dessa vez com Maria Rosa de Brito, com quem Maria Quitéria não terá boas relações. Pereira Reis Junior esclarece: “Fugindo à convivência com a madrasta, passa horas a fio longe de casa, correndo a fazenda. Não mais com aquela alegria selvagem dos seus nove anos, esbanjada no Licorizeiro, mas enlutada por estranha sensação de isolamento, que a faz tanto recordar o afeto materno, estado de alma que mais aumenta a resistência contra a madrastra e lhe incentiva o temperamento insubmisso aos caprichos do seu domínio”.

Maria Quitéria desenvolve uma habilidade que será definitiva para seu ingresso nas lutas pela independência: “Das distrações, a caça é a predileta. De espingarda a tiracolo, pervaga os agrestes da grande fazenda. A arma de fogo, que com habilidade maneja, tem, em sua mão, pontaria certeira. Raramente perde um tiro”, aponta Pereira Reis.

O ingresso na luta pela Independência

Independência da Bahia

Maria Quitéria contava já 30 anos quando ouve falar das batalhas pela Independência do Brasil. Um emissário da Junta do Governo chega à fazenda Serra da Agulha para solicitar apoio de Gonçalo para estabelecer a autonomia do país: “Gonçalo lhe ouve atento as palavras e com a impassibilidade da indiferença em torno de tão importante assunto, responde que nada pode fazer pela causa. O filho, que possui, é ainda criança e ele, pela idade, não mais pode alistar-se para defender o Brasil. Dispõe, apenas, de alguns escravos, e como o escravo nenhum interesse tem pela independência do Brasil, aguardará o resultado da guerra e acomodarse-á às ordens do vencedor”, conta Pereira Reis.

É aí que Maria Quitéria se dispõe à luta, sendo prontamente rechaçada pelo pai, que alega não ser esse desígnio algo próprio para mulheres, mesmo sabendo que a filha era perita na utilização da arma de fogo.

Ainda segundo Pereira Reis, Teresa, uma das irmãs de Maria Quitéria, não concorda com o pai, e incentiva a empreitada da irmã: “Teresa, depois de ouvi-la, como que incendiada do seu civismo bravio e contagiante, diz-lhe que, se não fosse o terse casado e estar esperando um filho, também se alistaria nas fileiras por metade do que estava a ouvir”.

É com as roupas do marido de Teresa e os cabelos cortados que se apresenta em Cachoeira. Lá utiliza como nome de guerra o nome do cunhado: Soldado Medeiros. Assentou praça num Regimento de Artilharia. Pouco tempo depois Maria Quitéria é transferida para o Batalhão de Infantaria, conhecido à época como “Voluntários do Príncipe”.

A tropa a que Maria Quitéria pertence chega a atuar em Nazaré (julho de 1822) e Santo Amaro do Catu, freguesia de Itaparica (agosto de 1822), com o objetivo de garantir a aclamação do Príncipe Dom Pedro.

Após essas duas operações, ocorre algo importante na história da heroína: seu pai, Gonçalo, chega a Cachoeira em busca da filha, que se recusa a voltar a São José das Itapororocas: “Gonçalo procura o comandante do Batalhão, conta-lhe o ocorrido e solicita sua retirada da tropa. Maria, porém, já havia suplicado ao major Silva Castro sua interferência junto ao pai, no sentido de não consentir o seu afastamento do campo da luta. Gonçalo ouve o major, que a ele transmite o nobre apelo de sua filha e, após forte relutância, cede aos seus caprichos, porém a amaldiçoa”.

É a partir desse momento que Maria Quitéria é reconhecida, no interior da tropa, como mulher. Pelas qualidades da sua atuação, permanece nas forças, participando de diversas batalhas, como as que ocorreram na capital (Pituba e Itapuã) e na Foz do Paraguaçu.

Pelo brilhantismo que demonstrou, Maria Quitéria foi promovida duas vezes em sua carreira militar. Primeiro a 1º cadete, pelo General Pedro Labatut. Depois a Alferes, por decreto do próprio Imperador, Dom Pedro.

O encontro com o Imperador

Dom Pedro

Algo importante sobre a trajetória de Maria Quitéria, pouco conhecido, é que ela teve um relacionamento com um outro militar, no ano de 1823, um furriel (graduação entre cabo e sargento) chamado João José Luís. Provavelmente foram casados, pois Maria Quitéria é apontada como esposa de João José Luís em documentos da época do próprio Exército Colonial.

O relacionamento parece não durar, já que após o fim das batalhas pela Independência Maria Quitéria casa-se novamente. Antes disso, porém, encerra sua carreira militar de maneira triunfante, sendo recebida pelo Imperador Dom Pedro I, no Rio de Janeiro, que lhe concede a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro.

Nesse encontro vale ler a descrição que a jornalista inglesa Maria Graham faz da heroína: “Ela é iletrada, mas inteligente. Sua compreensão é rápida e sua percepção aguda. Penso que, com educação, ela poderia ser uma pessoa notável. Não é particularmente masculina na aparência; seus modos são delicados e alegres. Não contraiu nada de rude ou vulgar na vida do campo e creio que nenhuma imputação se consubstanciou contra sua modéstia. Uma coisa é certa: seu sexo nunca foi sabido até que seu pai requereu a seu oficial comandante que a procurasse […] Sua vestimenta é a de um soldado de um dos batalhões do Imperador, com a adição de um saiote escocês, que ela me disse ter adotado da pintura de um escocês, como um uniforme militar mais feminino”.

Graham, que descreve o encontro no livro “Diário de uma viagem ao Brasil”, fala do espírito patriótico de Maria Quitéria: “Começou ela a descrever a grandeza e as riquezas do Brasil e a felicidade que poderia alcançar com a Independência. Atacou a longa e opressiva tirania de Portugal e a humilhação em submeter-se a ser governado por um país tão pobre e degradado. Ela falou longa e eloquentemente dos serviços que Dom Pedro prestara ao Brasil, de suas virtudes e nas da Imperatriz, de modo que, afinal, disse a moça : ‘Senti o coração ardendo em meu peito’”.

Os retratos de Maria Quitéria

No dia da visita ao Imperador, Maria Quitéria é retratada pelo pintor inglês Augustus Earle:

Maria Quitéria

Maria Quitéria com insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro – Pintura de Augustus Earle

Dois outros artistas editaram a versão original de Earle, colorindo-a e editando-lhe os traços:

Gravuras de Maria Quitéria

À esquerda temos a gravura presente no livro de Maria Graham, feita pelo ilustrador inglês Edward Finder. À direita a pintura do italiano Domenico Failutti, esboçando traços mais abrasileirados. O óleo sobre tela de Failutti está no acervo do Museu do Ipiranga, em São Paulo.

O retorno a São José, casamento e morte

Um dos aspectos importantes da visita de Maria Quitéria a Dom Pedro I é que ela solicita ao Imperador que escreva uma carta ao Sr. Gonçalo para que perdoe a filha pela desobediência: “Gonçalo lê com viva atenção a missiva imperial e um leve sorriso vai iluminando a fisionomia austera, que lhe compõe a longa barba grisalha. Ao terminá-la, abraça a heroína efusivamente, perdoando-lhe”, conta Pereira Junior.

Os dias que se seguem à sua chegada são penosos, pois a Serra da Agulha é transformada em local de romaria. Todos querem vê-la, ouvir de sua boca a história das batalhas, apertar sua mão e indagar do seu encontro com o Imperador.

Nessa época, é recepcionada com entusiasmo em diversas localidades da região: Coração de Maria, Pedrão, Irará etc. É nessa fase que se enamora de um lavrador do rio do Peixe, Gabriel Pereira de Brito, e com ele contrai matrimônio. Durante dez anos posteriores ao seu casamento, ocorrido por volta de 1825, Maria Quitéria não deixou rastros historiográficos, reaparecendo em 1835, já com uma filha, quando busca resolver situações burocráticas do inventário do seu pai, falecido em 1834. Em 1841 Maria Quitéria já estava viúva, com complicações nas vistas, e ainda lutava para receber a herança.

“Sem que lhe tomem conhecimento da presença, vai residir com sua filha no distrito de Santana, aí vivendo um decênio até o dia 21 de agasto de 1853, quando, num doloroso anonimato, os olhos cerram para a vida”, diz Pereira Reis sobre a morte de Maria Quitéria. “Acompanhado do pároco, que lhe ministra os sacramentos, e de alguns vizinhos e admiradores que lhe descobrem a glória, seu ataúde atravessa as ruas, ignoradamente, até o cemitério contíguo à igreja de Santana do Sacramento, sob os olhares indiferentes do povo, o mesmo que em delírio lhe ovacionara e lhe cobrira de rosas a farda dos Periquitos, ao sol do 2 de julho. Assim, sua derradeira hora, hora em que a Bahia primou pela ausência. Ingratamente”.

Maria Quitéria foi reconhecida, em 1953, como patrona do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro. Em Salvador, está representada no Monumento ao 2 de julho (Campo Grande) e numa estátua no bairro da Liberdade:

Maria Quitéria

Em Feira de Santana, foi criada uma Comenda para homenagear quem tenha prestado serviços relevantes ao município com o nome da heroína, a Comenda Maria Quitéria, além do monumento, localizado no cruzamento da avenida que recebe seu nome e a Avenida Getúlio Vargas:

Monumento a Maria Quitéria

 

Em São José das Itapororocas, atual Distrito Maria Quitéria, todo ano comemora-se o 2 de julho, com destaque para o papel da heroína. Apenas em 1943, 120 anos depois da atuação de Maria Quitéria, o Exército Brasileiro admitiu mulheres nas suas fileiras.