O Brasil está “gourmetizado”. Difícil ligar a televisão em algum momento do dia e não ver pelo menos um programa de culinária acontecendo – seja o badalado concurso MasterChef, na Band, seja o ironizado programa de Bela Gil, filha do Ex-Ministro da Cultura baiano.
Para falar um pouco sobre as influências que Feira de Santana vêm recebendo nesta área, conversamos com a chef de cozinha Ollivia Lima, que vem ministrando vários cursos de culinária na cidade, onde se percebe, segundo ela, um movimento de maior interesse dos feirenses pelo apuro gastronômico. Ela entende que este é o momento dos bares e restaurantes se adaptarem: “precisamos crescer muito em Feira ainda”.
Feirense de nascença, Ollivia também falou sobre acessibilidade à gastronomia, esmiuçou conceitos da área e disse que é, sim, possível definir se um prato é bom ou ruim para além do gosto pessoal de quem come. Confira:
Feirenses: Como iniciou a sua relação com a cozinha, até se tornar chef?
Ollivia: Eu sempre gostei muito de cozinhar, desde criança. Tive a felicidade de minha mãe me deixar ir pra cozinha. Lembro de episódios quando pequena, de uma menina cozinhando em minha casa, e eu sentia o cheiro. Quando ela saía eu ia com um banquinho e subia pra alcançar a pia e experimentar os temperos batidos. Acho que nasceu comigo isso, é uma paixão.
Aí quando fui fazer faculdade, não tinha gastronomia em Feira, e como sempre fui muito apegada a meus pais, resolvi fazer nutrição. Fui morar em Salvador e voltei pra Feira. Mas só trabalho em nutrição na área de produção, que é dentro da cozinha. Sempre trabalhei com isso. Meus professores falavam: “não é possível que você vai mudar para a área clínica”, e eu digo que nasci para ficar na cozinha. É o que eu gosto.
Tive outra oportunidade de ir para Salvador e fazer outra faculdade, foi quando fui fazer gastronomia. Junto com a graduação fiz uma pós-graduação e um curso de sommelier. Neste ano fui pra Itália estudar, fiz curso de culinária e conheci a cozinha de outro país, para entender as diferenças do que fazemos por aqui.
Feirenses: Em que atividades profissionais você aplica esse conhecimento?
Ollivia: Eu ministro cursos de culinária, e há 1 ano abri uma empresa, algo que começou no boca-a-boca com pessoas que faziam encomendas. Nessa empresa me juntei com uma aluna, que tem uma mão muito boa pra cozinha, perguntei se ela topava, e aí trabalhamos com encomendas.
Os cursos iniciaram com o incentivo da minha mãe, que criou a Bellamonna com minha tia, a princípio, para fazer biscoitos personalizados. Mas como eu estava me formando em gastronomia, e já dava alguns cursos na Perini, em Salvador e no SENAC, aqui em Feira, ela sugeriu que fizéssemos cursos próprios. E é algo que eu gosto muito, porque tem a troca de conhecimento com os alunos.
Feirenses: Qual a diferença entre ser cozinheiro e ser chef de cozinha?
Ollivia: Não existe uma lei que descreva isso, mas geralmente a gente chama de chef de cozinha quem faz os cursos de bacharel ou técnico em gastronomia. Mas também chamam de chef os cozinheiros que assumem a cozinha de um restaurante. Já o cozinheiro é aquele autodidata, que aprendeu no dia-a-dia.
Feirenses: E qual a diferença entre gastronomia e culinária?
Ollivia: É praticamente a mesma coisa, mas, por exemplo, num curso de culinária não são estudadas todas as técnicas de um curso de gastronomia. Culinária é algo mais básico, não se passa em um curso de culinária todas as técnicas de determinada área, é algo mais informal. Por exemplo, em vez de ensinar o corte “brunoise”, como acontece no curso de gastronomia, chamamos no curso de culinária de corte “em cubos”, para facilitar, porque é algo mais informal. A gastronomia exige técnica, preparo, arrumação de pratos, regras.
Feirenses: O que é, e como é definido, o conceito de “boa comida”? Quem define isso?
Ollivia: É claro que cada um tem seu gosto. Eu não posso discutir com alguém que não gosta de fígado e diz que uma comida que tem fígado é ruim. Mas tecnicamente é possível experimentar essa comida e perceber quais são as qualidades do prato (mesmo que eu não goste de fígado). Posso analisar se ele está preparado de uma forma adequada, se o tempero e a consistência estão bons, se a apresentação e o aroma estão agradáveis, se as técnicas aplicadas estão corretas. Ser bom ou ruim, pra quem é um gastrônomo, se refere a essas questões. Existem parâmetros objetivos.
Feirenses: A atual popularização e midiatização da gastronomia, principalmente pela televisão, é bom para quem trabalha na área?
Ollivia: Eu acho bom, porque as pessoas estão conhecendo mais, e estão querendo aprender. Mesmo as pessoas que não gostam de cozinhar procuram, de alguma forma, inserir no seu meio a comida com alguma qualidade. As pessoas agora têm espaço gourmet em casa, e fazem muitas encomendas. “Eu não sei cozinhar e quero aproveitar meu espaço gourmet”. Então essa tendência dos programas está levando as pessoas a se preocuparem com isso.
E como em Feira existem poucas opções de restaurantes, as pessoas estão buscando muito aprender através de cursos ou encomendar, pra receber os amigos. Além disso, elas querem sair cada vez menos, porque, entre outros fatores, não podem beber e dirigir, por exemplo. Então nesse contexto a midiatização acaba levando muita informação.
Feirenses: Mas não tem o caso de pessoas marcando espaço sem terem uma história nem preparo na área?
Ollivia: Isso tem em qualquer meio, em qualquer profissão. Isso é comum. Mas são poucos. Acho que a maioria quer aprender mesmo. Vejo muitos alunos meus com um crescimento enorme, pessoas que chegaram aqui sem saber fritar um ovo, e que hoje fazem tudo. Então são poucos os que querem marcar alguma posição de superioridade.
Feirenses: Gastronomia é acessível? Quem ganha pouco pode estudar e fazer bons pratos?
Ollivia: Pode sim. Por exemplo, hoje em dia você tem bares, barzinhos, que têm pratos muito bons, pratos que poderiam estar em grandes restaurantes. É uma oportunidade para degustar boa comida de forma acessível. Além disso, através desses mesmos programas de televisão que acabamos de falar, é possível obter informações para conseguir fazer bons pratos. Eles dão dicas, técnicas, de uma forma ou de outra, mas passam algumas técnicas.
“Por exemplo, aqui no Recôncavo, na região de Santo Amaro, existe uma tradição grande da maniçoba. Mas tem gente que não conhece.”
E o que é o importante da gastronomia é estar praticando e tentar ter a experiência. Por exemplo, aqui no Recôncavo, na região de Santo Amaro, existe uma tradição grande da maniçoba. Mas tem gente que não conhece. É típico da nossa cultura, existem maniçobas muito bem feitas e não é um prato caro. É importante procurar o que é característico de cada lugar e tentar ir conhecer. E daí você pode comer e tentar mudar, se perguntar o que combina e o que não combina etc.
Feirenses: O que você acha do fenômeno da “gourmetização”?
Ollivia: Acho um pouco exagerado. Eu não concordo com essa “pipoca gastronômica”, que agora está na moda. Nem tudo precisa ser “gastronômico”. Estou vendo também o inverso, que é muito bom. Tem casamentos onde se come no fim da festa pastel com caldo de cana. Tem uma corrente da gastronomia que valoriza a comida da avó, para que as pessoas lembrem da sua infância.
Na pipoca que falei, por exemplo, usam flor de sal em vez de sal comum, e a manteiga é francesa. Mas eu me questiono muito em relação a isso. Será que a pipoca tradicional não é boa? Se você faz um prato regional bom, bem feito, é melhor do que muitos com “frufruzinho”. Não querendo só criticar, porque, claro, tem pratos muito bons, mas está parecendo que só presta o que é “gourmet”.
Feirenses: Tradicionalmente, no Brasil, as mulheres são as responsáveis pela cozinha do cotidiano. Apesar disso, grande parte dos chefs de cozinha de referência no país são homens. Por que isso ocorre?
Ollivia: Acho que essa questão está mudando muito. Antigamente só se via homens na cozinha profissional. Por quê? Porque as mulheres eram cozinheiras de casa, e não iam trabalhar fora. Dizia-se que as mulheres não iriam aguentar o ritmo de uma cozinha, que é um trabalho cansativo, com panelas gigantescas, que precisa de um trabalho braçal. Por isso tem muitos homens na cozinha de restaurantes. Eles foram se especializando e se tornando chefs.
Mas hoje você vê mulheres também. Esse quadro está mudando, e a gente já tem chefs renomadas, como Roberta Sudbrack, Helena Rizzo e outras. Então tem chefes mulheres sendo premiadas também. As mulheres não fazem mais só comida caseira, como minha avó e as outras mulheres da época dela, que não trabalhavam fora. É o machismo daquela época que hoje está mudando aos poucos. Nos cursos de gastronomia que dou, por exemplo, têm bastante mulheres.
Feirenses: Existe diferença entre o homem e a mulher na cozinha?
Ollivia: Não. Depende muito mais do que a pessoa procura, do que ela quer. Se você tem interesse, você é bom, ou pelo menos tenta ser naquilo. Conheço mulheres que não sabem fazer nada, e outras que sabem muito. Com os homens é a mesma coisa.
Feirenses: Como você enxerga o cenário da gastronomia em Feira de Santana atualmente?
Ollivia: A gente já avançou bastante, mas precisamos crescer muito em Feira ainda. Não só os restaurantes, de uma forma geral, mas também em relação à dificuldade de achar produtos aqui na cidade. Tem pratos que precisam de coisas básicas, que poderia achar em qualquer cidade do porte de Feira e não encontramos aqui. Por exemplo, cogumelos frescos, que você encontra em dois ou três lugares mas não tem direto. Limão siciliano, que até tem aparecido mais. Creme de leite fresco, que não acha de jeito nenhum. Alecrim fresco, também é difícil.
São ingredientes que você acha, mas não estão disponíveis todos os dias. São poucos locais que vendem. Jabuticaba, por exemplo, uma fruta. Você não acha com tanta frequência.
Feirenses: Feira de Santana tem muitos restaurantes com chefs de formação?
Ollivia: Que tenha feito faculdade ou pós graduação na área, que eu conheça, não. Sei que Iran, do Vivas, está fazendo uma pós-graduação. Mas dos restaurantes daqui não conheço ninguém com formação na área. Tinha um chef no Restaurante Unique, que tinha uma formação, mas não sei se ainda está na cidade. Faz tempo que não o vi. Posso até estar me passando, mas não conheço ninguém que tenha formação por aqui.
Feirenses: Pra colocar um restaurante é necessário ter um diploma na área?
Ollivia: Não. Não tem nenhum órgão que exija isso. A maioria dos donos de restaurante ou são empresários que gostam do ramo ou são pessoas que gostam de cozinhar, tem alguma noção. E muitos contratam cozinheiros.
Acho que Feira tem campo para ter bons chefs nos restaurantes. A tendência é que apareçam chefs nesses restaurantes, que façam um diferencial, que o público vá ao restaurante por causa da comida muito boa.
Feirenses: Você já pensou em colocar um restaurante em Feira?
Ollivia: Até pensei em colocar um bistrô pra fazer cardápios que seriam escolhidos no dia. Então se tivesse reserva eu faria, por exemplo, camarão, ou siri, ou qualquer outro prato. Mas acho que essa é uma novidade ainda muito grande pra Feira, acho que não teria futuro ainda. Não sei se as pessoas iriam gostar tanto dessa coisa da surpresa, chegar no restaurante e só saber o que vai comer na hora. Mas já fui pra restaurantes assim e gostei. Gosto de tudo que é novo.
Feirenses: Que tipo de cozinha você se interessa mais (massas, frutos do mar…)?
Ollivia: Sempre gostei de tudo na parte de comida salgada. Não gosto da parte de confeitaria, de doces, não é muito minha praia. Mas hoje estou apaixonada pela cozinha italiana. Talvez porque estive lá recentemente, mas sempre gostei muito de fazer risoto, sempre testei, e consegui aprimorar o máximo do risoto – como pode servir, de não ter que ficar lá o tempo todo mexendo etc.
Na Itália, em si, em Milão, é uma comida que tem muito frutos do mar, que eu já gostava, e tem a questão das massas frescas, que eu estou apaixonada. Sempre gostei de massa, nhoque e tal, e acho que estou mais voltada agora pra essa cozinha italiana. A parte contemporânea mesmo, não só massa, mas incluindo frutos do mar, aquele produto muito mais natural, usando o tomate fresco, os mariscos frescos. Neste momento estou voltada pra isso.
Feirenses: Você foi jurada do concurso Soul Chef, que aconteceu no Hotel Atmosfera, em Feira de Santana. Como você vê a iniciativa?
Ollivia: Achei a ideia muito boa. É uma brincadeira, mas que tomou uma proporção grande na cidade. Isso mobiliza até mesmo quem vende ingredientes, pois mostra que tem gente procurando alguns produtos para cozinhar. Mostra que tem mercado pra isso e faz com que os restaurantes se aprimorem, porque as pessoas estão mais exigentes, procurando coisas diferentes.
Como disse a eles, acho que estão de parabéns. Tive o prazer de acompanhar o primeiro dia, e, comparando com a última vez que fui, eles cresceram muito. Foram da água para o vinho. Eu comi lá comidas melhores do que muitos restaurantes. E isso é bom pra cidade, porque mostra que tem quem goste de cozinha, que querem encontrar produtos aqui, que querem que tenha restaurantes legais aqui em Feira. Que não precisa ir para Salvador ou outro estado para comer boa comida.
Feirenses: Comparada com outras cidades, Feira deixa muito a desejar em relação aos seus restaurantes?
Ollivia: A outras cidades do mesmo porte, não. Mas comparada com a capital, que está aqui ao lado, a diferença é muito grande. Você chega em Salvador e vai pra restaurantes muito bons, com chefs que fizeram vários cursos, se aprimoraram, então tem uma diferença grande.
“Acho que em Feira ainda temos poucas opções de restaurantes. Tem pizzaria, churrasco, muito japonês, que virou uma febre. São poucas opções.”
Acho que em Feira ainda temos poucas opções de restaurantes. Tem pizzaria, churrasco, muito japonês, que virou uma febre. São poucas opções. Nós temos muito feijoada, maniçoba, churrascos, mas não temos nada específico. Nada que seja extraordinário, porque você não vê restaurantes com especialidade. Os restaurantes acabam vendendo de tudo, não focam em um tipo específico de cozinha.
Feirenses: Que tipo de ações podem estimular a qualificação da gastronomia na cidade?
Ollivia: Os campeonatos de gastronomia entre restaurantes são iniciativas legais. Porque os donos querem fazer “o melhor petisco do bar” para ganhar a competição, como ocorre em Salvador todos os anos. Outro ponto importante é que aqui em Feira nós não temos ainda uma faculdade que possa formar os interessados em gastronomia. Eu soube que algumas faculdades já estão tentando trazer o curso.
Feirenses: O que você acha dos food truck?
Ollivia: Acho super legal! Em Salvador tem umas feirinhas com vários food truck, onde você come comida de qualidade num preço muito acessível. O interessante é que as comidas são bastante específicas, e aí cai naquilo que eu falei da especialidade. Em um food truck só se vende hambúrguer, no outro cachorro quente, um outro é só massa, apenas dois ou três pratos, mas muito bons.
Feirenses: Falta público para mais restaurantes em Feira ou falta mais restaurantes para o público?
Ollivia: Antigamente não tinha público. As pessoas comiam considerando mais a quantidade do que a qualidade. Mas hoje isso mudou muito. A tendência é que os restaurantes precisem acompanhar a exigência do público. Hoje em dia as pessoas viajam, visitam outros estados e até outros países com mais facilidade do que antigamente e querem degustar outras coisas. Agora o mercado, restaurantes e barzinhos, terá que se adaptar.