Muito além do que a mídia tradicional reproduz, a fome não está apenas nos corpos esqueléticos, abatidos e retraídos da espontânea associação que fazemos ao tratar do assunto no Brasil. E é fácil constatar isso, principalmente depois da pandemia e dos retrocessos institucionais e orçamentários que o país sofreu no período pré-pandêmico, nas figuras de familiares, vizinhos, amigos, amigos de amigos ou conhecidos. Nas estatísticas, esse rosto é muito bem definido: a mulher preta e parda, mãe e desempregada. Rosto bem conhecido em Feira de Santana, nossa Princesa do Sertão, a cidade do interior mais populosa do Nordeste.

Na pesquisa divulgada em abril pela Rede PENSSAN (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) registra-se que no Nordeste 23 milhões de pessoas vivem atualmente com grau de insegurança alimentar leve, mais de 9 milhões retratam o grau moderado e outras mais de 7 milhões convivem com a fome. Desses nordestinos, mais de 57% são mulheres, majoritariamente pretas, chefes de família, trabalhadoras autônomas ou informais e desempregadas.

Um dos variados motivos dessa figura ser tão bem definida é a violência doméstica. Como se não bastasse toda a dor de passar por esse suplício, o caminho é longo e variado para essas mulheres após entenderem que sofrem algum tipo de abuso. As circunstâncias são diversas, como a natureza das agressões, e, no Centro de Referência Maria Quitéria (CRMQ) aqui em Feira, estive com algumas mulheres que passaram por tal situação. Elas conheceram a insegurança alimentar por conseguirem romper o ciclo da violência. Vale acentuar que elas não chegaram a essa situação apenas por ter sofrido tal violência, mas também pelo contexto pandêmico agravado por medidas governamentais, além da falta de auxílio do município.

Tereza Hora dos Santos aceitou conversar comigo, comedida e decidida, sobre como ela tem levado a vida depois de conseguir se divorciar, após vinte e nove anos, do abusador com quem foi casada desde os quinze. Hoje, ela mora no Aviário com dois dos seus três filhos: um menino de seis anos que sente a falta do pai, mas já sabe e diz para a mãe que não morar com ele é melhor; e uma menina de dezenove anos, que presenciou muitas das agressões sofridas por Tereza, chegando a pedir inúmeras ajudas não atendidas pela polícia.

Depois da separação, a renda da família de Tereza passou a ser exclusivamente o extinto Bolsa Família. Ela também recebeu o Auxílio Emergencial, do programa de renda mínima do Governo Federal aos mais vulneráveis durante a pandemia da Covid-19, Auxílio que, segundo o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudo Socioeconômico), custou a sair e a ser consentido, além de ter um valor baixo, o que influenciou diretamente a vida de parcela da população que teve a insegurança alimentar e a fome mais próximos de si, devido os sucessivos aumentos do preço da cesta básica.

Desde o mês de novembro, Tereza consegue pagar as despesas básicas com o Auxílio Brasil, com dificuldade: “Eu faço geladinho, vendo docinho, mas agora tá meio devagar…”, mas a vagarosidade das vendas não é o único impasse. Tereza não recebe nenhuma assistência além do Auxílio Brasil, o que inviabiliza a compra dos ingredientes para a confecção dos doces. “Aí eu penso assim, de eu arrumar algum emprego, eu já corri muito atrás… sempre trabalhei com político, carreata, entregar papelzinho, mas nunca consegui (um emprego)”. Logo depois de dizer isso, ela ressalta também a insegurança de conseguir o ansiado trabalho fixo. O filho dela ainda não tem idade para ficar sozinho em casa e a filha sofre de um estado de tristeza profunda, o que a impede de cuidar do irmão mais novo. Além do bairro Aviário não ter creche para deixar a criança: “Agora tá fazendo uma lá, mas não vai dá nem metade dos meninos, porque é muito menino. Fizeram muito condomínio no Aviário e creche que é bom, nada! Colégio, quase nada!… pra mim ficava mais tranquilo. A gente botava o menino na creche e arrumava alguma coisa pra fazer, né?”.

“E ela disse que nunca tinha sido tão leve na vida, que sempre andou de cabeça baixa sob os gritos desalentadores do marido.”

No final da conversa Tereza já estava bem mais sorridente e continuava segura de si. E ela disse que nunca tinha sido tão leve na vida, que sempre andou de cabeça baixa sob os gritos desalentadores do marido. Tereza só conheceu sua importância, que trouxe junto sua versão sorridente, no CRMQ, o que evidencia ainda mais a necessidade e efetividade de assistências de qualquer natureza.

Outra mulher que teve a vida mudada pelo CRMQ foi Joana Teixeira*. Ela só compreendeu que sofria violência doméstica quando passou a frequentar o Centro de Referência. Joana foi casada por dezoito anos com o pai das suas filhas (hoje com dezessete e vinte e três anos). Eles moravam no Distrito de Tiquaruçu. Iam vender leite de porta em porta, do Ponto de Serrinha até a Queimadinha, com um tambor de cinquenta litros na cabeça. Joana também vendia legumes e hortaliças cultivados em sua horta. Em casa, ela vivia diariamente com as agressões verbais do marido, que quando não estendiam-se às filhas, as colocavam como testemunhas dos abusos físicos e psicológicos sofridos pela mãe. Esse cenário resultou numa depressão da filha mais velha, na época com onze anos, que por recomendação médica foi morar na casa da mãe de Joana. Algum tempo depois ela retornou para casa, mas os abusos seguiram por anos, até a mesma filha dizer que não aguentava mais e que moraria novamente com a avó. Foi quando a mãe decidiu sair de casa.

Joana conseguiu construir uma casa com a ajuda da família e de amigos, e se mudou com as filhas. No início, o pai pagava uma pequena quantia de pensão, mas com o passar do tempo o dinheiro parou de chegar e começaram as calúnias direcionadas à ex-companheira. Até o dia em que as calúnias viraram ameaças, e quando ele tentou matar Joana ela teve que fugir com as filhas. Com os únicos cem reais que tinha guardado, foram para uma casa emprestada num sub-bairro da Conceição. Quando Joana deu queixa do então marido, muito abalada, recebeu suporte do CRMQ, que hoje ela chama de “coração das mulheres de Feira”. Foi lá que recebeu impulso, apoio e um lugar seguro para chorar e enfrentar as dores de dezoito anos de violência, além de suporte judicial e psicológico.

Para sobreviver, Joana dependia da ajuda dos familiares: “Não passei necessidade porque tive ajuda da família”. Uma sobrinha, que realizava doações de cestas básicas na igreja que frequentava, conseguia doações para a tia. Já na pandemia, com o Auxílio Emergencial e a contínua ajuda da família, Joana conseguiu organizar-se um pouco. Com um cartão de crédito, sua filha mais velha fez um curso e tornou-se corretora de imóveis, e hoje é ela quem sustenta a mãe e a irmã. No final de novembro, Joana conseguiu receber o Auxílio Brasil, mas garante que sem a ajuda da filha não conseguiria manter as necessidades básicas.

Com um breve contato com qualquer uma dessas mulheres podemos perceber que há uma série de fatores que levam as pessoas à insegurança alimentar. A violência doméstica é apenas um dos recortes que pode chegar a essa situação. Principalmente porque um grande número de mulheres que sofrem violência doméstica são dependentes financeiras dos agressores e não assistidas pelo Estado. A falta de acesso a serviços, políticas públicas, educação, saúde, ao mercado de trabalho, não tem como não resultar num cenário de vulnerabilidade. É por isso que, em sentido oposto às medidas federais que parecem prezar pela falta de assistência, os municípios precisam de medidas eficazes e organizadas para distanciar as famílias de baixa renda da insegurança alimentar e todos os problemas provocados e estimulados pela omissão governamental vigente no país.

*Nome fictício para proteção da identidade da vítima.