O estudo da História serve para percebermos a quantidade de progresso que uma sociedade alcançou e, através da análise do passado, é possível evitar cometer erros semelhantes no futuro. Por isso trazemos o texto a seguir, originalmente publicado na Revista Sitientibus (UEFS) de 1986, intitulado “Os dez mandamentos culturais de Feira de Santana”.

O autor do texto é o professor Vicente Deocleciano Moreira, que traz uma visão ácida a respeito do contexto cultural da cidade àquela época. Vale fazer a comparação com os tempos atuais:

Mandamento 1: a reclamação dos comerciantes

Um simples e lamentável decreto municipal matou, em 10 de janeiro de 1977, a resistente feira de Feira de Santana. No dia seguinte, alguns comerciantes procu­ram o Prefeito José Falcão da Silva, a fim de parabenizá-lo pela decisão; estavam li­vres da velha e “suja” feira, que eles pensavam ser a causa de suas decrescentes vendas e de seus prejuízos. No entanto, ainda hoje, muitos comerciantes se queixam contra um expressivo e endinheirado número de feirenses que continua preferindo o Shopping Center Iguatemi, em Salvador, ao comércio de Feira de Santana.

Mandamento 2: o fim dos casarões

Nas ruas Direita, da Aurora, do Meio e Senhor dos Passos – para citar apenas as mais antigas – pouco ou nada resta de testemunho, de mostra, para as gerações presentes e futuras, do passado da cidade. Em algumas dessas ruas, magazines e estabelecimentos bancários foram construídos sobre os escombros deixados pelas pi­caretas que demoliram antigos casarões, a ponto de apenas alguns metros separarem um banco de outro. Outras menos visitadas pelo capital abrigam pequenas lojas e até mesmo espaços comerciais descuidados e decadentes.

Mandamento 3: desvalorização dos artistas

O menosprezo e a desvalorização dos artistas feirenses chega ao extremo de se preferir catar os restos da decoração do carnaval de Salvador, para “enfeitar” a mi­careta de Feira de Santana, a fazer um concurso para realmente decorar as ruas du­rante a festa e com isso valorizar, de algum modo, a “prata da casa”.

Mandamento 4: a falta de arquivo

Como admitir uma cidade de mais de cem anos e de trezentos mil habitantes sem arquivo público? Por que a Prefeitura e a Universidade Estadual de Feira de Santa­na não se unem para instalar um arquivo para a cidade, a fim de contribuir na divul­gação e preservação da memória histórica e cultural dessa cidade?

Mandamento 5: a sede de “progresso”

A “força da grana” que, em Feira de Santana, não ergue e sim destrói coisas be­las – parodiando Caetano Veloso – a ignorância de uns, a omissão de outros e a usura provinciana e visão estreita de tantos vêm demolindo, impunemente, antigos casarões de valor arquitetôtúco e cultural e em seu lugar construindo monstrengos modernosos a imitar Salvador, São Paulo – e sabe-se lá quantas cidades mais! – no pior estoque arquitetônico de que elas dispõem. Constantemente, pairam ameaças sobre os poucos exemplares arquitetônicos de séculos passados que ainda resistem à sanha do falso “progresso” e ao depredador capitalismo subnutrido: demolir, des­truir, incendiar, “modernizar”, para construir estacionamento de veículos e satisfa­zer caprichos pequenos: são as ordens de serviço.

Mandamento 6: onde estão os centros culturais?

Que Feira de Santana é essa, de “tantos negócios e tantos negociantes” – lem­brando o poeta Gregório de Matos – que não tem uma livraria sequer, que tem apenas dois cinemas que só exibem pomô – filmes da pior qualidade, que tem um teatro sempre fechado, que não canaliza investimentos para o setor cultural “e nem mesmo turístico” – apesar dos trezentos mil habitantes, da Universidade e de deze­nas de escolas de nível médio?!… Onde estão os centros culturais?

Mandamento 7: desconhecimento cultural

O que sabem e o que conhecem os mais jovens dos pratos típicos da culinária da cidade e da região? O que sabe a população das origens e transfomrmações das festas populares e da própria cidade de Feira de Santana? Nada, absolutamente nada.

Mandamento 8: desconhecimento humano

Que mãe é essa que devora a si própria e a memória e a arte de seus filhos? Os poetas, pintores, cantores e músicos feirenses são tão desconhecidos pela população que nas raras vezes que alguém ou algum meio de comunicação lhes fazem referên­cias nominais, esses artistas parecem pessoas distantes no tempo e espaço e, às ve­zes, estão ao nosso lado na mesma desconfortável cadeira dos despedaçados ônibus que desservem essa mesma população. Quem irá contar, amanhã, a História dos vendedores ambulantes, das figuras humanas, as exóticas e as comuns de Feira de Santana?

Mandamento 9: o nome das ruas

Topônimos tradicionais de ruas em Feira de Santana são rebatizados com outros nomes, para atender interesses eleitoreiros do momento e satisfazer vaidades indivi­duais. E como fica a memória da cidade?

Mandamento 10: o “gato” no artesanato

O artesanato longe, muito longe, de ser feirense, de ser tipicamente regional, é produzido nos mais distantes estados nordestinos e até mesmo no Sul do País. O resultado é que, de um lado, os incautos compram um falso artesanato regional e, de outro, o artesão local, condenado ao ostracismo, procura outros meios de sobrevi­vência.

 


Após a descrição desses mandamentos, o professor Deocleciano finaliza: “cabe indagar se não será Feira de Santana uma cidade condenada a repetir seu passado, por não ter sabido preservá-lo e mantê-lo vivo na sua memória histórica e cultural”.