Quando as lojas fecham e os comerciários enchem os pontos à espera de condução para voltar para casa, o centro de Feira de Santana começa a ser ocupado por outro tipo de trabalhador. Eles vão chegando aos poucos, normalmente quando as lojas encerram o expediente e os comerciários vão cerrando as inescapáveis portas metálicas com aquele ruído característico, rascante. Mas efetivamente ocupam as ruas centrais quando apenas alguns retardatários se afastam com passadas rápidas, sequiosos pelo repouso noturno. O esvaziamento das principais artérias do centro comercial facilita seu trabalho.

Nesse inverno, de frio intenso – para os padrões feirenses – e de garoa constante, o trabalho se torna mais árduo. As gotas da chuva fina reluzem sob as lâmpadas alaranjadas dos postes, acumulam-se sobre o asfalto rugoso, enregelam aqueles que se esfalfam sem agasalhos adequados, distribuídos pela Senhor dos Passos, pela Marechal Deodoro, pela Conselheiro Franco.

“Esses trabalhadores, anônimos e pouco notados, são os coletores de material reciclável”

Os guardas-noturnos – há dezenas espalhados pelo centro da cidade – e eventuais operários que fazem reparos rápidos na fachada de alguma loja costumam ser as únicas testemunhas da labuta dessa gente. Os motoristas que avançam velozmente estão sempre entretidos com o volante e isolados pelos vidros dos carros. Não costumam perceber aquelas figuras socialmente invisíveis.

Esses trabalhadores, anônimos e pouco notados, são os coletores de material reciclável: ali, antecipam-se à coleta regular do lixo e asseguram preciosos recursos, indispensáveis à sobrevivência de quem dispõe de escassas oportunidades na vida feroz da cidade grande.

Tração

Catador de papelão

Há décadas esses trabalhadores anônimos circulam pelo centro da cidade. Alguns se aventuram com uma carroça e um animal – magro e maltratado – que puxa preguiçosamente a carga. Mas a regra é que eles mesmos assumam a função, puxando com músculos retesados minicarroças que vão ficando abarrotadas de papelão. A caminhada, para muitos, é extensa: finda nos distantes bairros periféricos da Feira de Santana. De lá, seguem para as empresas que compram o produto para reciclagem.

Há aqueles mais afortunados: contam com a solidariedade de comerciantes ou comerciários, que já deixam os volumes amarrados junto aos postes, à espera do coletor. Outros mergulham numa frenética triagem, remexendo caixas, descartando espuma, plástico, folhas de papel. Movem-se como espectros sob as sombras densas do centro da cidade de luminosidade opaca. A movimentação intensa dessa gente é o que empresta vida às noites melancólicas do centro da Feira de Santana.

“Há quem vá acompanhado da mulher, que se empenha na faina com a mesma disposição masculina.”

Alguns circulam acompanhados de cachorros, magros, malcuidados, mas dóceis com seus donos. Deserdados pela sorte, muitos solitários contam apenas com a companhia fiel desses animais. Há quem vá acompanhado da mulher, que se empenha na faina com a mesma disposição masculina. Enérgicas, carregam fardos volumosos com músculos retesados. Esses são mais raros, mas não falta quem trabalhe acompanhado até por crianças que, inocentes, brincam e correm enquanto os adultos dedicam-se à labuta insalubre.

Futuro

Catador de lixo

Durante muito tempo – e mesmo nos dias atuais – houve a concorrência dos usuários de drogas, particularmente do crack. Arruinados pelo vício, incapazes de sustentar uma rotina convencional, os dependentes químicos encontram em atividades do gênero a oportunidade de acumular algum recurso para consumir droga. Quem acompanha o cotidiano da Feira de Santana sabe que esse grupo foi diminuindo, tragado pela espiral implacável da violência.

É dura a rotina de quem se aventura em ofícios desse naipe. Arrastam a minicarroça, curvam-se triando material, carregam o peso do produto selecionado, acomodam sobre o veículo, arrastam-no fazendo a tração, deslocam-se por extensos percursos até a periferia pobre onde armazenam a carga que, finalmente, será vendida no dia seguinte. Os magros trocados ajudam a ir sobrevivendo.

“As afamadas pontes para o futuro não passam de pinguelas para o passado.”

Por mais de uma década essa multidão de anônimos figurou na imprensa, robustecendo os números dos programas sociais, fomentando discussões sobre políticas públicas. De um ano para cá, estão sendo esquecidos. Só são mencionados quando se estima o impacto do Bolsa Família sobre o orçamento, ou o custo do direito do pobre de se aposentar pela Previdência oficial, daqui a algumas décadas.

Ao longo da chamada Nova República (1985-2016) uma tênue esperança de que o Brasil tinha jeito animou parte da população. Parecia que tendíamos à promoção da inclusão, à reconciliação histórica, a um futuro diferente do passado. Hoje, a legião de desvalidos que cata papelão ali pelo centro da cidade evoca a sensação que as afamadas pontes para o futuro não passam de pinguelas para o passado.

 

Foto de Capa: Ascom-Caritas Brasileira/CNBB

Foto 2: Ascom-Catadores de Metrópole

Foto 3: Ascom-AGETEC reciclagem