A “moral e os bons costumes” e os “valores familiares” geralmente não permitem tratar do tema da prostituição sem tabus, preconceitos e julgamentos moralistas. De maneira geral, ainda ocorre o que define a professora Maria Carolina Silva Martins, mestre em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela UFBA: “O lugar do sexo considerado adequado e o sexo para o prazer permanecem localizados em lugares distintos, enquanto o primeiro se manifesta no lar, cercado pelos laços do matrimônio e associado para os fins da reprodução, o segundo é palco de estereótipos da mulher que usa seu corpo para ganhar dinheiro. Alteraram-se as formas de se apresentar, mas elas não garantiram mudança no discurso moralizador que sustentava a imagem dicotomizada da mulher honesta e da desonesta”.

Maria Carolina traz essa e outras discussões em sua dissertação de mestrado, intitulada “Nas veredas dos discursos moralistas: a honra das mulheres em Feira de Santana”, onde apresenta diversos documentos históricos de grande relevância para entender o lugar da mulher nos discursos e entendimentos sociais nas décadas de 1960 e 1970, em Feira de Santana. É aí que surge a investigação sobre um dos mais notórios prostíbulos de Feira de Santana, o “Sonho Azul”, localizado no Bairro da Queimadinha.

“Políticos, fazendeiros, comerciantes ricos e outros indivíduos da alta sociedade feirense eram frequentemente vistos no prostíbulo”

O Sonho Azul era frequentado pela alta sociedade, recebendo a clientela de grande poder econômico e político da região. Políticos, fazendeiros, comerciantes ricos e outros indivíduos da alta sociedade feirense eram frequentemente vistos no prostíbulo. Segundo depoimentos de entrevistados por Maria Carolina, o bordel era considerado de alto padrão, com orquestras, moças bem vestidas que trajavam vestidos longos e mesmo transparentes, “adequado ao nível dos homens que lá frequentavam”. Veja algumas fotos:
Bordel "Sonho Azul", na Queimadinha, Feira de Santana

Bordel "Sonho Azul", na Queimadinha, Feira de Santana

Bordel "Sonho Azul", na Queimadinha, Feira de Santana

Bordel "Sonho Azul", na Queimadinha, Feira de Santana

Bordel "Sonho Azul", na Queimadinha, Feira de Santana

 

A influência das prostitutas

O estudo aponta que, àquela época, os frequentadores influentes dos prostíbulos feirenses ofereciam serviços aos donos dos estabelecimentos para evitar o impedimento de funcionamento dos bordéis nos lugares onde se encontravam, como a entrada da polícia para vasculhar o recinto.

“Há o uso de poderes por essas mulheres, que jogavam com sua sexualidade de forma a ganhar mais do que o dinheiro por um encontro, pois, por conta da estreita amizade com os fregueses, elas também recebiam favores da polícia, serviços de advogados, dentre outras benesses”, diz a dissertação de Maria Carolina.

“As minissaias e os shorts curtos não eram permitidos”

O sonho Azul era de propriedade de uma cearense, a senhora Maria do Rosário. Ela orientava as prostitutas a demonstrar um comportamento civilizado, sendo explícito nos gestos, nas roupas, nos detalhes que permitissem explorar a sutileza de uma dama, mas não apagasse a sensualidade feminina.

Dona Maria foi uma cafetina respeitada por todos. Segundo um dos entrevistados na pesquisa, ela dominava “as pessoas que frequentavam”, além de manter a ordem dentro do seu estabelecimento e exigir que todas as suas “meninas” usassem roupas adequadas. As minissaias e os shorts curtos não eram permitidos. Os frequentadores eram recebidos pelas “mundanas” com roupas elegantes, em seus vestidos longos, “bem comportados”, que tinham como complemento perucas, acessórios caros e pouco acessíveis.

O capelão militar que “entregava” frequentadores dos bordéis às esposas

Um fato inusitado da época em que o Sonho Azul existia, era a atuação do Capelão e oficial da Polícia Militar, Edmundo Juskevics (denunciado em investigações da Comissão da Verdade). Edmundo era de origem lituana, exilado na Itália e na Alemanha devido à invasão russa em Riga, Letônia, chegando à Bahia em 1960 e, em 8 de maio de 1962, foi nomeado capitão da Polícia Militar da Bahia e naturalizado brasileiro. Depois do Golpe de 1964, serviu em Feira de Santana.

O estudo aponta relatos de que, caso um homem fosse encontrado na “zona”, era intimado a sait dali e ir transportado ao Jeep preto do “Capelão”, para ser entregue diretamente à esposa que, em casa, era informada o local em que seu marido tinha sido encontrado.

Ruínas do "Sonho Azul"

Ruínas do “Sonho Azul” em 2003

 

Pinturas nas paredes do Sonho Azul

 

A professora Maria Carolina Silva Martins debate com profundidade, em sua dissertação, o quanto o discurso de “progresso”, sempre presente nas projeções da elite feirense, tratou de forma moralizadora as classes menos abastadas e as minorias sociais na cidade. Diz ela: “Nas transformações urbanas não cabia a prostituição nas casas alugadas no núcleo urbanístico, pois infligia os valores morais não só das famílias, mas da sociedade burguesa emergente. Não foi sabido notícias de um movimento organizado para retirá-las do local, mas havia inquietações e descontentamentos da proxmidade que os bordéis tinham das ditas casas de família. Hoje, ainda há becos que mantêm sua atividade na forma de ponto de encontro e aluguéis de quartos”.

 

Leia a dissertação de Maria Carolina Silva Martins na íntegra!