Logo depois do almoço é possível encontrar alguns caminhoneiros na área de um dos tantos postos de abastecimento de combustível instalados em Feira de Santana. É o momento da pausa para o cafezinho, fumar um cigarro (para os adeptos), conseguir, quem sabe, um novo frete, descansar ou simplesmente jogar conversa fora. É nesse lugar que encontramos os três personagens que vamos apresentar em seguida.

Arlanio Freire do Nascimento, natural de Salgueiro em Pernambuco, Fábio Carvalho Barbosa, de Juazeiro, Bahia e Valmir de Queiroz Duarte, o Val, natural de Conceição do Almeida, porém, morador de Feira de Santana há muitos anos, como ele conta. O que esses três homens tem em comum? O gosto pela vida perigosa que levam na boleia dos seus caminhões pelas estradas Brasil afora.

De pai para filho

E é da boleia do caminhão de Arlanio – conhecido pelos colegas de profissão como “água com gás”, apelido que causa risos entre ele e o amigo Fábio, que também atende pelo codinome “jiló” – que pode ser escutada a música dos artistas sertanejos Bruno e Marrone e o forró da Banda Calcinha Petra. Os ritmos são companhias constantes nas longas jornadas de trabalho e no momento do almoço, que estava iniciando às 15h30, ali mesmo, na cozinha portátil acoplada ao caminhão.

Caminhoneiros em Feira de Santana

A panela da cozinha portátil do caminhão. Foto: Val Silva

O pernambucano é um jovem de 25 anos que está na profissão há sete, e que conta ter desde a infância o sonho de ser motorista. “Desde quando eu me entendo por gente que eu sabia que queria ser motorista. É de família. Meu pai é caçambeiro também. Eu comecei a vida ajudando minha mãe na feira e nunca quis estudar, mas sempre gostei de trabalhar, de ganhar dinheiro. Hoje meu sonho é dar conforto a minha família e estou conseguindo com o meu trabalho. Eu sou solteiro, mas busco ajudar meu pai e minha mãe. O lado bom dessa profissão não é salário, não é carregamento bom, frete bom. É reencontrar um amigo na estrada que você tem muito tempo sem encontrar”, afirma Arlanio.

“O lado bom dessa profissão não é salário, não é carregamento bom, frete bom. É reencontrar um amigo na estrada que você tem muito tempo sem encontrar.”

Atualmente Arlanio e Fábio são funcionários de uma empresa de Santa Catarina que faz transporte de carga para diversas regiões do país. Fábio, que desde os 14 anos dirige, explica a rotina de trabalho. “A gente faz três viagens e folga três dias. O dia a dia da gente é esse. Desde pequeno eu andava com meu pai em caçamba, com 14 anos eu já trabalhava com ele. Aos 18 anos tirei a carteira e fui trabalhar como empregado. Já faz 17 anos que estou na profissão. Trabalhei com diversas cargas, como produtos químicos, inflamável, carga seca, entre outras. A carga inflamável e a química são as mais perigosas, tem que ter muita atenção”, ressalta Fábio.

Os riscos da profissão

Se a estrada tem seus encantos, ela também apresenta seus riscos. Com alguns anos a mais de profissão, Valmir Queiroz, o Val, como também é conhecido, é motorista autônomo e sabe bem a dor e a delícia de ser o que é.

“São mais de 30 anos de profissão. Durante esses anos foram muitas coisas nessas estradas. O que mais me marcou foi um acidente que teve comigo, isso não apaga nunca. Bati no fundo de outro carro. Foi Deus em primeiro lugar e o cinto de segurança. Só quebrei uma perna e essa foi a única vez. Roubo nunca aconteceu, tenho dado sorte. Nunca perdi uma carga”, ressalta, agradecendo a Deus.

O caminhoneiro Fábio e sua esposa, Geiza. Foto: Val Silva

O caminhoneiro Fábio e sua esposa, Geiza. Foto: Val Silva

Quebrar uma peça e ficar parado, também pode ser uma situação bem adversa para quem vive na estrada. “Já aconteceu de estar com minha família, o caminhão quebrar o eixo e pegar fogo, e a gente ficar três dias parados na estrada. A sorte que tinha um colega que vinha no caminhão atrás e uma borracharia que nos deram apoio”, lembra Fábio do difícil momento.

“Os caminhoneiros hoje andam muito com as famílias para não se sentirem tão só, já que a classe não é tão unida. Quando eu não venho, fico em casa orando por ele. Falo com ele todos os dias. É difícil, mas é o trabalho dele”. Geiza Gabrieli é esposa de Fábio, eles são casados há 18 anos.

Um companheiro traiçoeiro: o sono

O sono é um dos vilões mais conhecidos da profissão. Por muitos anos a prática do uso do rebite, substância a base de anfetamina e seus derivados, que atuam como inibidor de apetite e estimulante é comum entre a categoria. Porém, com o passar dos anos, a substância teve sua circulação reduzida através de fiscalização. O uso contínuo causa dependência física, psíquica, dores de cabeça crônicas, insônia, taquicardia e até impotência sexual. Muitos dos jovens motoristas passaram a substituí-la pelo uso de outras drogas como o crack e a cocaína, ou fazem o uso associado ao de bebida alcoólica.

“A cocaína e o crack hoje para quem faz o uso é mais fácil encontrar que o próprio rebite. Hoje em dia quem tomba caminhão é quem usa droga e rebite, pois nenhum dos dois resolve o problema do sono”, explica Arlanio, que diz ter seis meses sem fazer uso de rebite. “Hoje que eu deixei de tomar, me sinto mais disposto, com mais energia pra o dia a dia, sou outro homem”.

“O rebite tá proibido, não se acha mais com facilidade e estão recorrendo às drogas. O rebite causa problemas, como enfraquecimento nos ossos, perda de apetite. Tive um amigo que conseguiu pagar um carro usando rebite, quando terminou de pagar o segundo, morreu devido ao uso exagerado”, conta Valmir.

Fábio, também recorda um acidente em que se envolveu por não ter dormido o suficiente e voltar dirigir sem ter condições. O carro em que ele estava virou. “Hoje em dia sono a gente resolve parando e dormindo”.

Feira Noise Festival

Segundo Dirceu Rodrigues Alves Júnior, médico, diretor da ABRAMET (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego), em entrevista ao site Transporta Brasil, o Brasil possui cerca de 3 milhões de caminhoneiros, sendo 80% autônomos e 20% vinculados a alguma empresa. “Em um estudo realizado, para cada 400 (quatrocentos) caminhoneiros submetidos a exame “ANTI-DOPPING” na urina, onde se pesquisou a presença das substâncias citadas anteriormente, 10% eram positivos. Isto é, dos 400 (quatrocentos) caminhoneiros 40 (quarenta) usavam as drogas. Concluiu-se então que dos três milhões de caminhoneiros hoje trabalhando, 300.000 (trezentos mil) consomem de maneira contínua os produtos capazes de produzir alterações graves”.

Além dos riscos de acidente, causados pelo sono, a falta de segurança e as más condições das rodovias são também críticas que todos eles têm no que se refere à precarização da profissão. “As estradas precisam melhorar. A segurança é zero, não tem policiamento a noite. É Deus por nós. O diesel tá caro. O preço do frete não tá compensando. Tou na profissão porque gosto de unir o útil ao agradável. A liberdade que a gente tem. Conhecer pessoas, encontrar amigos. Viajar para mim é também uma terapia. Mas, infelizmente, hoje em dia não vale mais a pena”, ressalta Valmir.

“As estradas precisam melhorar. A segurança é zero, não tem policiamento a noite. É Deus por nós”

No dia 09 de novembro, a categoria iniciou uma greve, a segunda esse ano, por melhores condições de trabalho, aumento do valor do frete e diminuição da cobrança de pedágio. Seu Valmir não acredita no sucesso do movimento. “Acho que esse movimento não vai levar a nada, quem manda mesmo são os políticos. Os donos das transportadoras são deputados. A gente é minoria. Sou de acordo com as propostas. Mas não tem um lugar para a gente parar. Aqui [no posto] se for pra gente descansar não tem onde, tem que pagar para ficar no alojamento ou abastecer 100 litros, ou seja, R$ 300,00, ou então tem que ficar na pista, a mercê dos bandidos”.

Segundo eles, a cidade de Feira de Santana ainda é uma das poucas que oferece uma estrutura mínima e em poucos postos, mas ainda falta muito para oferecer a estrutura necessária.

“Devido ao porte de caminhões que entram e saem de Feira de Santana todos os dias, ela precisa de postos mais estruturados, mais acolhedores. Esse é o primeiro posto que parei aqui para descansar. Você para, abastece e ainda querem te cobrar o banho. Tem certas coisas que precisam melhorar”, diz Arlanio. Já seu Valmir reclama que no trajeto Feira-Salvador dificilmente se encontram lanchonetes ou borracharias disponíveis a partir das 18 horas.

“Todos os caminhos levam a Feira de Santana”

 

O caminhoneiro Valmir: escolheu Feira de Santana como morada. Foto: Val Silva

E não é só o artista que canta a terra, Carlos Pitta, que concorda com essa frase. Na fala dos amigos viajantes Feira de Santana não é só a terra dos entroncamentos rodoviários, é também lugar de encontros. “Feira de Santana é onde a gente sempre passa e encontra alguém conhecido. Qualquer trecho que você venha fazer no sentido Nordeste – Sul passa em Feira. É uma das cidades mais estabilizadas para receber caminhoneiros”, diz Arlanio.

Fábio, que já tem por hábito parar na cidade, para descansar, já se sente a vontade por aqui. “Aqui eu me sinto confortável, à vontade. Aqui é um lugar adequado, já que a maioria dos postos ainda não oferece estrutura adequada em muitas cidades. Aqui ainda encontramos um serviço melhor, seguro. Em muitos lugares ainda a gente para e corre o risco de ter alguém com o revólver na nossa cara.” De Feira de Santana, ele também leva a lembrança de um assalto, dentre os quatro do qual foi vítima durante esses anos de estrada.

Seu Valmir, que não é feirense, mas adotou a terra como sua casa, diz que não existe melhor sensação que o retorno. “Nossa cidade é maravilhosa comparando com as outras. Os que não são daqui às vezes reclamam que é ruim achar frete, que tudo aqui é caro. Feira é um entroncamento, tudo acontece aqui. Eu defendo Feira porque as pessoas de fora falam muito mal da cidade, que aqui só tem ladrão. Os ladrões vêm de fora. Quando retorno o sentimento é de agradecer a Deus por voltar pra casa, tá perto de tudo, o sentimento é esse.”

A cidade ainda tem muita coisa a melhorar quanto à estrutura para esses profissionais, isso é inegável. Porém, uma bela homenagem simboliza o reconhecimento da importância deles para a economia. No ano de 2007, o artista Gil Mário presenteou o município com o Monumento ao Caminhoneiro, uma obra abstrata que pode ser vista na Praça Jackson do Amaury, na Av. Presidente Dutra. Se antes, na Feira do passado, eram os carros de boi puxados pelos vaqueiros que transportavam mercadoria para abastecer a região, hoje são esses viajantes os responsáveis pela circulação de tudo o que entra e sai na cidade Princesa, porta do Sertão.


 

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Feira Noise Festival

FEIRAMUNDO é a ideia-chave do Feira Noise Festival neste ano. À primeira percepção, revela uma imagem ainda mais grandiloquente que aquela de Feira de Santana como sertão-cidade, explorada em 2014. Tem-se a cidade-mundo, um espaço onde se encontram culturas menos ou mais longínquas. Tem-se um palco para a reunião de ativistas culturais e de outras frentes, onde eles possam identificar sua conexão primordial enquanto tratam de suas particularidades, pois seus objetivos, em meio a tantas bandeiras, terminam por ser um só: vencer lutas legítimas.

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