O Feiraguay é um dos principais elementos da cultura comercial em Feira de Santana. Além de ser um pólo de compra e venda, o Feiraguay é atração turística, atraindo feirenses, baianos e brasileiros de estados da federação. Iniciado a partir da aglomeração de vendedores de brinquedos e produtos eletrônicos na rua Sales Barbosa (por volta de 1992), o lugar ganhou esse nome porque grande parte das mercadorias comercializadas eram oriundas do Paraguai. Em 1996 os comerciantes foram deslocados para a Praça Presidente Médici, localizada no fundo da Igreja Matriz, lugar onde até hoje permanece.

A facilidade de acesso ao país vizinho, que possui mercadorias importadas com preços baixos, foi uma oportunidade para muitas pessoas que desejavam a inserção no comércio, buscavam melhores condições de vida e tinham o sonho de serem donas do próprio negócio. Trabalhar para si mesmo parece ter sido o sonho coletivo de todos os comerciantes que iniciaram no Feiraguay àquela época. Para isso, formavam inúmeras caravanas que partiam de Feira de Santana rumo à fronteira brasileira em busca de produtos importados para comercialização por aqui.

Hoje, o desafio não é manter o negócio na legalidade, mas enfrentar a concorrência dos imigrantes chineses, e os efeitos da crise econômica por que passa o Brasil. Fomos ao Feiraguay entender um pouco melhor esse momento, e saber como os comerciantes feirenses estão se relacionando com os orientais.

“Não tinha nota de nada. A polícia tomava tudo.”

Seu José Antônio foi uma dessas pessoas. Natural de Jeremoabo, ele mora em Feira de Santana há 38 anos, sendo 20 deles atuando como comerciante do Feiraguay. É um dos comerciantes mais antigos, e trabalha no Feiraguay desde quando as barracas ainda eram montadas e desmontadas todos os dias. “Saí da minha cidade e escolhi Feira porque era uma cidade boa para morar e trabalhar. Comecei vendendo brinquedo na Sales Barbosa, vizinho ao Mercado de Artes. Lá era muito bagunçado, tinha muita gente, mas ninguém queria sair de lá. Tinha medo de vir pra cá, mas aqui foi uma melhora para a gente”.

Seu José ressalta a dificuldade que era para adquirir as mercadorias e os prejuízos de viver na ilegalidade. “Antigamente eu viajava para o Paraguai e era um sofrimento. Praticamente morava dentro do ônibus. Chegava e logo voltava. Acontecia muitas vezes da gente ser assaltado, o ônibus ser roubado no meio do caminho e também como a gente não tinha nota de nada, muitas vezes a polícia tomava tudo”.

A situação ilegal das mercadorias e o grande número de pessoas inseridas no comércio de produtos importados chamava a atenção da fiscalização, e também para a necessidade do poder público buscar alternativas de organização dos comerciantes. Na conjuntura atual eles estão organizados em barracas e realizam as negociações utilizando o controle da nota fiscal.

“Já tivemos muitos prejuízos em relação à nota fiscal. Hoje eu trabalho com eletrônicos e viajo para São Paulo para comprar. Tudo agora tem nota fiscal. Criei meus filhos aqui, eles trabalham comigo e hoje todo mundo vive daqui. Eu adoro o Feiraguay, já vendi muito aqui. Hoje só não está melhor por causa da crise e também da concorrência com os chineses”, diz o comerciante.

Os chineses no Feiraguay

Os chineses no Feiraguay

Falar dos chineses no Feiraguay gera muita polêmica. Entre impressões positivas e negativas, é possível ver um grande número deles espalhados em diversos boxes e lojas. Organizados em sua maioria em núcleos familiares, eles falam muito pouco português, são muito reservados, discretos e preferem não falar, principalmente se o assunto for comércio.

Rodrigo Sodré, que há 16 anos é comerciante de produtos eletrônicos no Feiraguay, diz que os chineses são um verdadeiro incômodo: “A concorrência com eles é desleal. Eles vendem produtos iguais aos nossos, porém, com preços mais baixos. Nossa maior dificuldade é manter o faturamento em dia. Não sabemos como eles conseguem, pois não temos diálogo sobre os preços”.

Rodrigo explica a grande diferença de preços dos produtos: “Antigamente eles eram os fornecedores, hoje, são concorrentes. Por exemplo, uma calculadora que eu vendo aqui na minha banca de R$ 10,00 no atacado, eles vendem de R$ 7,50. Isso é desleal, é o preço que eu pego no meu fornecedor. Os chineses são muito educados, vivem na deles, não são de confusão, o que a gente tem a reclamar é sobre a questão dos preços, que, inclusive, eu acho que o poder público deveria se manifestar sobre isso”.

“Não tenho nada contra os chineses. Eles também são meus clientes e eu não posso reclamar. Compram e pagam, tudo bem direitinho”

Com essa dificuldade de dialogar e equiparar o preço das mercadorias junto aos comerciantes chineses, muitos feirenses têm saído do Feiraguay, e estão abandonando o comércio. Ao mesmo tempo, cada vez mais, a comunidade chinesa se espalha, fenômeno que pode ser observado até mesmo em outras partes do centro de Feira de Santana. Eles estão no comando de lojas de segmentos diversos, a exemplo de eletrônicos, bolsas, vestuário e miudezas em geral.

Até um restaurante chinês foi aberto no Feiraguay. O empreendimento atende não só as demandas dos comerciantes orientais da região, mas também pessoas que vivem e trabalham nas redondezas, e são atraídas pelos sabores da milenar culinária asiática. Em um ambiente muito limpo e organizado, o restaurante atende aos clientes com um cardápio variado, que inclui desde o arroz, feijão e bife até opções como yakisoba, bifum, frango xadrez e o tradicional rolinho primavera.

Dona Tânia Maria também é comerciante do Feiraguay e cliente assídua do restaurante chinês. “Eu sempre vou lá almoçar, é tudo muito gostoso. Não tenho nada contra os chineses. Eles também são meus clientes e eu não posso reclamar. Compram e pagam, tudo bem direitinho”.

Ela também está no Feiraguay desde o início. Comercializando lanches, a mãe de cinco filhos conta que criou todos a partir do comércio e sente-se orgulhosa e feliz de trabalhar no mesmo lugar há tanto tempo. “Criei meus filhos aqui. Um deles também quis ser comerciante e trabalha com confecções. Eu adoro o Feiraguay. Eu tenho conhecimento com todo mundo, não tenho problema com ninguém. Todo mundo é trabalhador e eu gosto de todos. Enquanto eu estiver viva e bem quero continuar por aqui”.

“Eu sou a cara do Feiraguay”

Ninguém sabe quem é Edson Vitório no Feiraguay. Mas quem procurar por Libu do Reggae encontrará uma das figuras mais simpáticas e receptivas do lugar. Como ele próprio diz: “Eu sou a cara do Feiraguay!”. Muito alegre e comunicativo, o “rastaman” é músico, comerciante e está no Feiraguay desde 1996. Também iniciou seu trabalho na Sales Barbosa. Trocou o comércio de eletrônicos pelo ramo de CDs e DVDs, e há 13 anos acompanha todos os lançamentos do mercado musical brasileiro, além de ter em sua barracas diversas mídias com músicas de reggae, nacionais, internacionais e os grandes clássicos.

“Saímos do calçadão da Sales, viemos pra cá, praticamente expulsos e poucos acreditavam que ia dar certo. Lá o comércio era ótimo, só que o espaço foi ficando pequeno. Depois que viemos para cá a ficha foi caindo e fomos nos organizando. Ficamos na resistência e hoje está tudo sobre controle”, diz Libu.

“Eu não tenho nada contra os chineses. Aqui todo mundo tem que correr atrás do seu. É a lei da sobrevivência.”

Ele fala das dificuldades nesses mais de 20 anos de trabalho. “Antes eu trabalhava com produtos importados, eletrônicos, bugigangas em geral. Era muito difícil, a gente viaja muito. Já cansamos de ficar 15 dias escondidos na BR com medo de perder tudo. Não tinha nota fiscal e a gente era bastante perseguido. O pessoal hoje paga nota, paga imposto. Migrei pra CD e DVD, porque a música é linda. A música está no meu sangue. O país da gente está numa situação dessa dificuldade imensa e se a gente não parar pra ouvir uma música fica difícil”.

Com 46 anos, ele já viajou pelo mundo como músico, tem uma filha e já é avô. Para ele, no Feiraguay tem espaço para todo mundo, inclusive para os chineses. “Eu não tenho nada contra os chineses. Aqui todo mundo tem que correr atrás do seu. É a lei da sobrevivência. Hoje eu vendo muito sertanejo universitário, Fernando e Sorocaba, Jorge e Matheus, Lucas Lucco e Henrique e Juliano. Aqui tenho todos os lançamentos da música. A gente tem que acompanhar, se não, fica de bobeira”, finaliza.

“Meus filhos são mais brasileiros do que chineses”

Feiraguay Feira de Santana

É difícil chegar ao Box de Dona Val e não sentir-se atraído pelas cores das bijuterias e diversos acessórios femininos. O colorido dos brincos, colares, pulseiras e de todas as miudezas é refletido no sorriso carismático da comerciante que trabalha no Feiraguay há exatos 12 anos. Com 50 anos de idade e 4 filhos, ela decidiu trabalhar no Feiraguay depois de enfrentar dificuldades no comércio com jóias. “Eu vim aqui para sobreviver, e já são 12 anos de vitórias. Aqui todo mundo vem buscar seu pão de cada dia e eu gosto de tudo. Conheço muita gente. Tenho minhas amizades”.

Muito alegre, Dona Val não se deixa abater diante das dificuldades. Ela comenta sobre os desafios enfrentados com a crise econômica e a queda das vendas, mas diz que tem buscado alternativas para atrair os clientes: “O comércio pra vender tem que criar. Crise existe, mas a gente tem que criar. Eu mudei as etiquetas, mudo de lugar, arrumo pra ficar mais atrativo, mais bonito. Coloco bolas, luzes, e isso atrai o cliente. O cliente vem, apesar da dificuldade, e assim as coisas vão melhorando”, diz ela.

O carisma de Dona Val é tão contagiante que até os chineses, com toda a sua discrição e seriedade, não resistem. Os chinesinhos e chinesinhas vivem em um entra-e-sai de brincadeiras na banca da comerciante, que não se incomoda e demonstra muito carinho e atenção com as crianças. E é ela que nos apresenta a chinesa Ana Zhen. Uma exceção entre a maioria dos chineses que trabalham no Feiraguay, Ana é muito extrovertida, graciosa e adora conversar.

Gosto muito daqui. Gosto de conversar e adoro brasileiro. Brasileiro é tranquilo, alegre. Chinês é mais sério. Eu gosto do Brasil, da comida, feijão e picanha.

Comercializando óculos, Ana Zhen tem 32 anos e está no Brasil desde 2006. Em Feira de Santana está há oito anos e fala que já se sente em casa. Apesar do português ainda embraçado, ela consegue entender tudo e diz que, junto com a família, já está super adaptada em solo feirense. “Gosto muito daqui. Gosto de conversar e adoro brasileiro. Brasileiro é tranquilo, alegre. Chinês é mais sério. Eu gosto do Brasil, da comida, feijão e picanha. Meus filhos são mais brasileiros do que chineses”, explica com seu português um tanto confuso.

Ana diz que não pretende voltar a morar na China, embora sinta muita saudade da família e dos amigos. Ela diz que talvez volte para lá quando estiver idosa. Mas, por enquanto, quer continuar no Brasil, morando e trabalhando, indo ao seu país apenas para passear.

Dentre as impressões positivas sobre a presença dos chineses no Feiraguay, Jéssica Santos de Jesus fala com conhecimento de causa que a sua relação com a comunidade oriental é a melhor possível. Ela trabalha com Ana Zhen desde quando a chinesa se estabeleceu em Feira de Santana.

“Tenho oito anos que trabalho com Ana. Nossa convivência tem sido muito boa. Ela aprende comigo e eu aprendo com ela. Ela aprendeu o português comigo e me fala sobre a sua cultura, religião e comida. Somos amigas, saímos juntas e frequentamos uma a casa da outra. Além disso, no campo profissional não tenho nada para reclamar. Tenho carteira assinada e todos os meus direitos garantidos”.


 

Separados por tantas diferenças – culturais, religiosas, históricas, comerciais – brasileiros e chineses que atuam no Feiraguay têm como característica comum a garra, a determinação para o trabalho, a luta pela sobrevivência e esperança de dias melhores. Está expressa também nas pessoas a diversidade de produtos, cores, fragrâncias e sabores do Feiraguay. São homens, mulheres, crianças, brancos, negros e orientais que escolheram o solo feirense para semear suas histórias. Aqui existem todos os tipos de negócio: sertanejo, brasileiro, e, também, negócio da China.