Já se vão não sei quantos anos que o Cine Timbira deixou de ser cinema, e as ruas e praças da cidade deixaram de ser o espaço da meninada em suas tradicionais diabruras. Difícil de imaginar que poucas crianças, hoje em dia, se dariam ao luxo de ficar até as dez da noite, de praça em praça, brincando de bola, ou mesmo de esconde-esconde, em meio às ruas centrais da cidade. Hoje, que as ruas sucumbem diante da supremacia dos novos projetos residenciais. Nada contra! É apenas uma observação, diante das transformações que vivenciamos nos espaços públicos, e que faz dos cinemas de rua um atestado vivo (melhor, morto!), de todo esse processo.
Sei que é difícil de imaginar que bem ali pertinho da Prefeitura, onde hoje se localiza a Loja Americanas, havia um típico cinema de rua. Reza a lenda que, mesmo antes do finado Cine Timbira, houve por lá um outro, muito mais antigo, o Cine Santanópolis. Não me lembro desse, já que nem nascido era; mas do Timbira com certeza sou capaz de rememorar tim-tim por tim-tim, como era, como foi e como nunca mais será.
Mas é verdade, acreditem, as Americanas da Senhor dos Passos um dia foi cinema. Difícil de acreditar, sei disso. Faz alguns meses que tive por lá, e pude atestar in loco quão maravilhosa fora a transformação operada ali. Engraçado lembrar agora de ter assistido por lá ao filme Família Adams (1994), então ainda como um guri, desses que não podia andar pela rua se não fosse de mãos dadas. Lembro bem das cadeiras acolchoadas do velho cinema, todas avermelhadas, e a imagem na tela projetando os olhos esbulhados de Raul Julia, ao interpretar Gomez Addams. Lembro ainda de haver no Timbira uma bomboniere, e seria capaz de recordar dos doces que tanto fizeram a nossa alegria por aqueles idos: o Caramelo de Leite da Nestlé, o pirulito do Zorro, que tanto grudava nos dentes, ou ainda o surreal Cigarrinhos de Chocolate, que estampava uma criança a empunhar, acreditem, um cigarro, numa espécie de sátira farsesca para esse mundo que muito bem poderia ter saído das telas do finado Cine Timbira.
Sou capaz de citar ainda outro filme que vi por lá. Chamava-se Junior (1994), e contava a estória de um grandalhão, interpretado por Arnold Schwarzenegger, que, inusitadamente, havia ficado grávido. Lembro que esse filme ainda contava com a participação de Danny DeVito fazendo algum papel, que não lembro bem qual era. O mais importante é que, dia desses, estive na loja Americanas, e não pude deixar de rir, ao me deparar, em uma das sessões, com os DVDs dos dois filmes. Não só os doces haviam mudado. Nada contra as mudanças! Deixemos isso bem claro!
No antigo Cine Central, localizado em frente ao Feira Tênis Clube, as lembranças correm soltas: de estranhos filmes B acerca da guerra do Vietnã, que ainda teimavam em serem exibidos nos cinemas mundiais já na aurora da década de noventa, ou todas as imagens espetaculares das miscelâneas de filmes produzidas para a criançada. Uma infinidade de filmes era exibida por lá, desde a saga infinita dos Trapalhões, ou uma cinematografia pré-Harry Potter, como a infindável saga História Sem fim (1984, 1990 e 1994).
Mas o que aconteceria com o Cine Central? Dos cômicos nacionais aos heróis hollywoodianos, se tornaria o espaço para o melhor da cinematografia pornográfica em Feira de Santana. E, de alguma maneira, houve algo de muito digno nisso.
Já se vão alguns anos, a Micareta já havia deixado o aperto da Getúlio, indo ocupar as vastidões da Presidente Dutra, e lembro, agora, mais do que nunca, do Cine Íris, ali, quase em frente ao ponto do Nordestino; ali, onde hoje existe somente o vazio, um símbolo do processo de transformação de nossa cidade. Foi por lá que vi Matrix (1999), junto com alguns colegas, depois de filarmos aula no Colégio Castro Alves. Que me perdoe a professora Bibi, filei para ir ver Matrix! E só quem assistiu o primeiro em um cinema sabe do que estou falando. Não havia como não se empolgar com todos aqueles efeitos especiais. Qualquer um poderia realmente achar ter descoberto o princípio da irrealidade do mundo, as forças operatórias das simulações que constituiriam a superfície da nossa tênue realidade.
É verdade, a cidade, assim como a nossa realidade, não era o que imaginávamos. E é bem possível que nunca tenha sido, já que uma nova cidade sempre se erguerá por cima de outras. Vão-se os prédios, ficam o imaginário transformado pelas forças operatórias que regem as construções e desconstruções. E talvez seja essa a força pulsante de nossa condição. Destruir e reconstruir: isso sim é puramente lógico. Nos cinemas de rua de Feira de Santana assisti a tantos outros filmes, quase sempre os estrangeiros, como rezava a boa cartilha dessa nossa geração que atravessaria os inquestionáveis anos 90, e os sorrateiros anos 2000, em puro devaneio. Matrix era, sem dúvida, uma boa metáfora para esse mundo prestes a se desmoronar, como sempre é, como sempre foi, e sempre será!
Ao longo desses anos, então, de mãos dadas com Deus, ao lado do Diabo, os cinemas de rua seriam de tudo um pouco: espaço de fé, espaço de sexo, templo do consumo do varejo, algum novo mercado, mais um novo estacionamento a ocupar as velhas ruínas. Um lado saudosista observa tudo isso, enquanto um outro saúda a transformação, o jogo atabalhoado entre um mais novo fim e um outro velho começo. “A volta dos que não foram II”, anunciariam os cartazes desses cinemas imaginários.
E o que essas ruínas querem nos dizer? Talvez algo sobre os nossos sentidos e a forma como o nosso imaginário, ao longo desses anos, se transforma, acompanhando as modificações urbanas, sociais e culturais inscritas na cidade. Mas qual seria a lógica desses esvaziamentos centrais? Não somente do esvaziamento material do concreto a ocupar a cidade em suas dinâmicas; mas digo de um outro, perceptível na forma como sentimos e percebemos a cidade em sua própria dinâmica expressiva, algo como uma linguagem a nos oferecer sentidos e significados: como iremos ler a nossa cidade?
Belo texto sobre os cinemas q moram dentro de nós!