Em 1777, o grande químico francês Antoine Lavoisier enunciou a Lei da Conservação das Massas, que tornou conhecida a célebre frase: “Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. De fato, o Planeta Terra tem uma capacidade própria (Biocapacidade) de renovar e transformar seus recursos naturais para que sejam novamente reutilizados pelos seres humanos. Dessa forma, a Natureza se torna fonte primária (por isso, o nome matéria prima) de extração de recursos para os seres humanos produzirem seus alimentos, ferramentas, máquinas, carros, casa, móveis, computadores, livros etc.

O grande problema ocorre quando os materiais gerados por conta do nosso consumo supera a capacidade própria da Terra em aproveitar os materiais produzidos pela ação dos humanos e transformá-los em novos recursos naturais. É importante registrar que, neste ano, a data 1º de agosto foi marcada, mundialmente,  pelo Dia de Sobrecarga da Terra (data utilizada para indicar que a humanidade esgotou todo o estoque de recursos naturais que a Terra é capaz de renovar a cada ano). Um dos debates que o fato do Dia de Sobrecarga da Terra ter chegado mais cedo este ano fomenta é sobre a quantidade de lixo que cada ser humano produz diariamente, e a forma menos prejudicial ao meio ambiente de disposição final desse material.

Em Feira de Santana, estima-se que são geradas 650 toneladas por dia de resíduos sólidos (outro nome dado à palavra lixo). Deste total, calcula-se que 305 ton/dia são compostos por materiais recicláveis. Ou seja, quase metade do lixo produzido em Feira de Santana pode ser reciclável.

Badameiros

Foto: Matheus Rios

O princípio básico da reciclagem é a compreensão de que cada material tem um ciclo de vida (papel: 3 meses; alumínio: 100 a 500 anos; ferro: 100 anos; sacos plásticos: mais de 100 anos) e que nós podemos dar um novo ciclo de vida a esses materiais (reciclagem) ao invés de mandá-los para um aterro. Esse é um processo que envolve diversos atores sociais, assim como várias etapas, tais como: coleta, triagem (tipo de produto, cor), pré-processamento e destinação final do material para uma empresa que transformará o material em um novo produto.

A fim de reduzir os resíduos recicláveis dispostos em aterro, realizar ações de educação ambiental, reduzir o entulho disposto irregularmente, reabilitar as áreas contaminadas e incluir e fortalecer organizações de catadores, o Poder Público Municipal aprovou, no final de 2017, a Política Municipal de Resíduos Sólidos e o Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos de Feira de Santana:

“Com o olhar de curto, médio e longo prazo, o Plano se operacionaliza por meio de diretrizes estratégicas, metas, políticas e programas. O planejamento se utiliza da etapa prognóstica para, dado o diagnóstico realizado, contemplar as modificações, ampliações e melhorias necessárias à coleta e destinação de resíduos sólidos, através de programas específicos.”

Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduo Sólido

Um desses programas é o Programa de Estruturação de cooperativas/associações de recicladores já existentes na cidade: COOBAFS, Artemares e Recicla Zona Rural. Nesse contexto, vamos conhecer melhor a COOBAFS e algumas histórias de vida das pessoas que utilizam do lixo como sua fonte de renda e meio de sobrevivência.

O Surgimento da Cooperativa de Badameiros de Feira de Santana (COOBAFS)

COOBAFS

Cooperativa dos Badameiros de Feira de Santana (COOBAFS) – Foto: Matheus Rios

Há 15 em anos, em 05 de abril de 2003, 21 catadores que trabalhavam no antigo lixão de Feira (local onde hoje se encontra o Aterro Sanitário – Nova Esperança) se reuniram para formar a COOBAFS – Cooperativa dos Badameiros de Feira de Santana.

“Os badameiros feirenses eram cidadãos que sustentavam suas famílias coletando e comercializando os materiais recicláveis do lixo e que, antes da formalização da cooperativa, trabalhavam sem nenhuma diretriz e organização, expostos às mais duras intempéries da exclusão social.”

Fonte: Blog da COOBAFS

Atualmente, a maior parte das atividades da Cooperativa ocorrem no galpão da antiga Empresa Baiana de Alimentos (EBAL), na Avenida João Durval Carneiro, ao lado da Cesta do Povo. A COOBAFS conta com 25 cooperados que trabalham na coleta de resíduos secos (papel, plásticos, alumínio, ferro), triagem, prensa e comercialização dos fardos.

Por ser uma cooperativa, portanto, uma entidade sem fins lucrativos, a renda do cooperado é obtida pela divisão do valor da venda em proporção com as horas que ele/ela trabalhou. Ao longo desses anos, a Cooperativa conseguiu adquirir quatro prensas, uma empilhadeira, dois carrinhos elétricos, dois caminhões e um micro-ônibus. A estimativa é que a COOBAFS envia para empresas de reciclagem em média 60 ton/mês. Hoje em dia, a Cooperativa faz a realização da coleta domiciliar, através de seus carrinhos elétricos, nos bairros Santa Mônica e Capuchinhos.

Por ser uma entidade autogestora, os representantes do Conselho de Administração são eleitos através de Assembléia Geral. A atual gestão é formada por Dona Irandi Alves (presidente e membro fundadora da Cooperativa); Ivonete Araújo (vice-presidente), Marlene Alves (tesoureira) e conta com o apoio de Sara Nascimento, que é Assistente Social da Cooperativa. Isso mesmo. Como dizem por aí: “Mulheres no comando!”. A Cooperativa conta ainda com o trabalho de dois motoristas habilitados para dirigir caminhão. Os cooperados moram em diferentes bairros da cidade, tais como: Rua Nova, Jardim Cruzeiro, Nova Esperança, Mangabeira e Campo do Gado.

A história de vida de algumas mulheres da COOBAFS

Cooperativa COOBAFS - Feira de Santana

Dona Irandir: “Depois que eu conheci o lixo foi que minha vida mudou”. Foto: Matheus Rios

Dona Irandir, ou, simplesmente, Tia Fia, mãe de sete filhos, está no seu terceiro mandato de presidente da COOBAFS. Ela conta que começou a trabalhar com lixo no antigo Lixão. Segundo ela, apesar de não ser um lugar digno para trabalhar, era dali que tirava o sustento dela e de sua família. No lixão trabalhavam pouco mais de 300 pessoas: “O Lixão era um local terrível. Disputávamos trabalho com os urubus, com cavalos… era todo tipo de animais.”

Ainda assim, Dona Irandir deixa evidente o valor do lixo na vida dela: “Depois que eu conheci o lixo foi que minha vida mudou. Porque depois que eu comecei a trabalhar ali, nunca mais faltou pão na minha mesa. Porque, às vezes, as pessoas não conhecem o valor lixo e fica discriminando.”

Ela também fala que a Cooperativa trouxe dignidade e melhores condições de trabalho para ela e seus pares. Tia Fia reclama que muitas vezes falta reconhecimento por parte de alguns setores da sociedade, mas que, por outro lado, existem muitas  pessoas que reconhecem e valorizam o trabalho de coleta.

Nas palavras dela: “Às vezes a gente vai agradecer a eles e eles respondem: ‘Não precisa agradecer, não! Quem tem que agradecer a vocês somos nós. Porque o trabalho de vocês é importante porque se preocupa com o meio ambiente, vocês estão se preocupando com o futuro dos meus netos, meus bisnetos, e daqueles que estão vindo ainda.’ ”

Ao ser perguntada sobre como a população pode contribuir com o trabalho de coleta, ela responde que a única coisa que eles pedem é que as pessoas separem o lixo seco do “molhado”.

O lixo molhado ou úmido é aquele composto por materiais orgânicos (restos de comida, casca de verduras e frutas etc) e materiais não-recicláveis (vidros quebrados; papel higiênico; cotonetes, fraldas descartáveis, plásticos e papéis engordurados; e copos e pratos descartáveis). Para as empresas, os cooperados costumam levar um big bag e, quando este está cheio, eles mesmo vão buscar.

Sara Nascimento

Sara Nascimento - COOBAFS

Sara Nascimento, assistente social da COOBAFS. Foto: Matheus Rios

Assistente Social da COOBAFS, Sara começou a trabalhar na Cooperativa no final de 2013, após um período de estágio junto aos cooperados. A função que exerce na Cooperativa se baseia na Serviço Social de Planejamento que, segundo ela, é a mais apropriada para entidades que se baseiam na Economia Solidária como forma de desenvolvimento. Este tipo de Assistência desenvolve ações, tais como: captação de recursos, capacitação de catadores para autogestão, empoderamento feminino, apropriação de tecnologias sociais e políticas públicas de inclusão sócio-produtiva.

“A cooperativa de catadores se baseia em princípios como o fomento à inclusão social, a geração de trabalho e renda, a participação popular e comunitária, autogestão, de modo que os protagonistas sejam os próprio cooperados”, diz ela.

Sara compartilha que quer ver a Cooperativa para além de uma instituição econômica e de trabalho. Na sua percepção, a cooperativa é uma escola para o desenvolvimento dos próprios catadores. Ela cita o exemplo de Marlene, uma das cooperadas, que apesar de não ter o ensino fundamental completo, tem desenvolvido diversas habilidades dentro da Cooperativa: manusear com facilidade um sistema de gerenciamento de dados; compreender o que é um fluxo de caixa; formatar uma planilha no Excel; dar entrevista no rádio (Marlene foi entrevistada na cidade de Conceição do Jacuípe em julho).

Sara também explica que muitos catadores têm suas histórias de vida marcadas pela exclusão e vulnerabilidades sociais, miserabilidade e histórico de competitividade no Lixão e que, nesse sentido, as cooperativas e associações funcionam como estratégia de inclusão socioprodutiva.

Sara também fala que a parceria com as instituições de ensino da cidade é essencial para o desenvolvimento de um trabalho multidisciplinar. Por exemplo, ela relata que dois estudantes de Engenharia de Produção estavam estagiando lá, e como um deles era técnico em segurança do trabalho, ela já aproveitou o conhecimento dele na realização de palestras para os catadores.

“Nós somos um campo muito aberto para pesquisa. Já temos muitas pesquisas aqui, inclusive de fora da Bahia”, afirma.

Marlene Alves

Marlene Alves

Marlene: “Antes da Cooperativa, eu não tinha nada”. Foto: Matheus Rios

Marlene é uma catadora relativamente jovem na Cooperativa; entrou em 2016 na COOBAFS. Antes de se tornar uma cooperada, ela trabalhava como catadora de forma autônoma.

Ela diz que não tem função definida, “de tudo faz um pouco”: prestação de contas da Cooperativa, coleta porta-a-porta, dirigir a empilhadeira, além de dar palestras em escolas sobre o tema da Educação Ambiental.

“Posso dizer que a Cooperativa mudou a minha vida. Antes da Cooperativa, eu não tinha nada. Foi com dinheiro da Cooperativa que, criei meus filhos, praticamente. Foi quem me tirou da sarjeta. Eu sou hoje quem eu sou por causa da Cooperativa”, disse ao Feirenses.

Edna Maria Brandão Santos

Dona Edna

Dona Bibi: “A gente tinha que trabalhar debaixo de sol e chuva”. Foto: Matheus Rios

Dona Bibi, ou Dona Edna Maria, é uma das catadoras mais idosas da Cooperativa. Prestes a completar 60 anos, ela conta que trabalha com lixo há mais de 22 anos. Toda essa experiência lhe rendeu a responsabilidade e a honra de ser Delegada Nacional, como representante do estado da Bahia na IV Conferência Nacional do Meio Ambiente, em Brasília, no ano de 2013 (inclusive o nome dela consta no Relatório Final da Conferência). Quando perguntada qual a diferença entre trabalhar no Lixão e na Cooperativa, ela responde:

“Depois da Cooperativa, melhorou, né!? Porque, antes, estávamos no lixão misturados com tudo o que é coisa: era seringa, era bicho morto. Aí a gente estava sujeito a ‘tá’ se cortando toda hora com vidro. E aí, depois com a Cooperativa, não. Porque a gente vai na empresa, mostra ela com que a gente trabalha, e lá mesmo eles já separam. Lá no Lixão, não. A gente tinha que trabalhar debaixo de sol e chuva. Arriscado adoecer, tomar um ‘furada’ de alguma seringa que esteja infectada. Hoje a gente pode dizer que a gente está no céu. A gente viaja pra fora pra conhecer outras cooperativas.”

Além disso, com o tempo, a COOBAFS foi gerando capilaridade no território baiano. Ou seja, começou a incentivar e prestar apoio à criação de novas cooperativas em municípios do nosso estado como é o caso das cidades de Santo Estevão (COOBASE) e Saubara (COOBASA).

O dicionário badameiro

Cooperativa de Badameiros - Feira de Santana

O termo badameiro é pouco usual nos dicionários online. Quem explica a origem do termo é Sara Nascimento, a assistente social da Cooperativa. Segundo ela, em alguns dicionários mais antigos, o badameiro era uma espécie de classificador no qual os/as estudantes levavam os papéis, os livros e os materiais escolares. Outra teoria, também segundo Sara, explica que o termo adveio do fato dos catadores pegarem os big bags e carregarem nas cabeças, de modo que ficavam parecidos com uma “bandana”.

Aliás, um aspecto inerente a todo e qualquer grupo social são os termos e expressões compartilhadas entre seus membros, não sendo diferente com os catadores. Dona Irandir define alguns:

  • “Langanho”: uma comida feita com vários (restos de) alimentos juntos;
  • “Garujo”: carro do lixo;
  • “Braga”: uma amontoado de materiais juntos;
  • “Cacareco”: balde e/ou bacia;
  • Sopro”: material de limpeza;
  • Lambão”: big bag.
  • “Carouxa”: um coco furado com estopa embebida em querosene para formar uma espécie de candeeiro.

Enfim, viver em uma cidade limpa, bem cuidada, que preserve os rios, solos, florestas, o meio ambiente de forma geral, certamente é o desejo de todos os cidadãos e cidadãs feirenses. No entanto, para fazer Feira de Santana uma cidade referência em redução do lixo que é jogado no aterro é importante estar atento(a) à importância de adotarmos algumas práticas, tais como: o consumo consciente, a disposição seletiva dos recicláveis e o apoio às cooperativas de materiais recicláveis, a exemplo da COOBAFS.

E já que estamos falando de consumo consciente… não seria má ideia, sempre que formos ao Shopping Boulevard, ou locais na redondeza, levarmos  garrafas PET, plásticos, papéis velhos, latas de cerveja para depositarmos na sede da COOBAFS, na João Durval. Assim vamos contribuir para transformar nosso lixo em “pão na mesa” de muitas  famílias feirenses.