Nos últimos anos o debate sobre racismo e discriminação à cultura e às pessoas negras tornou-se mais popular no Brasil, possibilitando avanços (mesmo que tímidos) na diminuição do preconceito racial. Entre as iniciativas mais importantes nesse sentido, está a valorização e fomento da autoestima das pessoas negras, que passa pelo reconhecimento e valorização dos atributos físicos e culturais da população afrodescendente.

Uma das figuras históricas de grande importância nesse tipo de militância é uma feirense, que foi precursora na popularização de penteados Afro e da estética negra no Rio de Janeiro ainda nos anos 1970, quando o movimento negro tinha bem menos maturidade que atualmente. Idalice Moreira Bastos, conhecida como Dai Bastos, teve reconhecimento internacional pelo trabalho que realizou em prol da autoestima das pessoas negras, em especial as mulheres.

Dai Bastos

“O tempo todo fomos massacrados, dizendo que negro é feio e não é inteligente. Quando a gente começa a se gostar e a se achar bonito as coisas mudam”, diz ela em uma entrevista para um documentário sobre seu trabalho, na década de 90.

Com a popularização da sua arte (como ela fazia questão de classificar), Dai passou a treinar jovens carentes para exercer a profissão de cabeleireiras especializadas em penteados de mulheres negras. A ONG AfroDai chegou a ser indicada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como um dos 40 projetos sociais mais importantes do mundo.

“Não tem como você competir com o outro se você não pode nem comer, se você não pode pagar universidade. Se você não pode nem comer, você não tem o que fazer, você não tem coragem, força, não tem dignidade, não tem nada”, afirmou ela ao mesmo documentário, fazendo referência à necessidade de ensinar uma profissão aos jovens carentes (assista abaixo).

 

 

Entrevista à Folha

Idalice saiu de Feira de Santana quando tinha 13 anos de idade. Em setembro de 1998, concedeu uma entrevista marcante à colunista Joyce Pascowitch, na Folha de São Paulo, que reproduzimos a seguir:

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Uma das precursoras das técnicas afro – no quesito beleza – no Rio, nos anos 70, a cabeleireira Dai Bastos vendeu tudo que tinha – carro, apartamento mais salão de beleza – para passar o aprendizado adiante. Trocando Copacabana por um casarão antigo da Lapa, ela criou o Espaço de Estética e Cultura AfroDai, uma ONG onde jovens entre 14 e 21 anos – geralmente pobres e muitas já com filhos – têm cursos de maquiagem, depilação, manicure e penteado junto com palestras sobre cidadania e saúde.

A história deu tão certo que o projeto foi classificado pela ONU como uma das 40 melhores práticas do mundo para melhorar o tipo de vida – e as 40 alunas recebem do Comunidade Solidária ajuda de custo para alimentação e vale-transporte. Partindo da ideia de que não adianta dar cesta básica para que as pessoas tenham trabalho e auto-estima – a maioria das alunas já está empregada -, a moça batalha verbas para ir além: acomodar as 80 candidatas da fila de espera e investir na terceira idade.

Joyce Pascowitch: O que merece um corte radical?

Dai Bastos: As desigualdades sociais.

Joyce Pascowitch: Cabelo louro é…

Dai Bastos: Lindo.

Joyce Pascowitch: Cabelo afro é…

Dai Bastos: Maravilhoso.

Joyce Pascowitch: Como desembaraçar os nós?

Dai Bastos: Com creme de babosa – e carinho.

Joyce Pascowitch: Quando é preciso se descabelar?

Dai Bastos: Diante do racismo.

Joyce Pascowitch: Como trançar idéias?

Dai Bastos: Refletindo a vida.

Joyce Pascowitch: A grande batalha é…

Dai Bastos: Ajudar a vencer a pobreza.

Joyce Pascowitch: Onde o Brasil não embaraça?

Dai Bastos: Onde existir cidadania.

Joyce Pascowitch: O que só se corta com navalha?

Dai Bastos: A falta de respeito.

Joyce Pascowitch: Como preservar as raízes?

Dai Bastos: Cuidando da auto-estima.

Joyce Pascowitch: Que reflexos são imediatos?

Dai Bastos: Os da beleza.

Joyce Pascowitch: Ideias podem ser clareadas?

Dai Bastos: Como também prolongadas.

Joyce Pascowitch: A melhor oficina é aquela que…

Dai Bastos: Ensina o ofício.

Joyce Pascowitch: O que não pode faltar na penteadeira?

Dai Bastos: Batom.

Joyce Pascowitch: Como cortar o mal pela raiz?

Dai Bastos: Com firmeza e competência.

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Muitas cabeleireiras cariocas que trabalham com a estética negra atualmente aprenderam o ofício com a feirense Idalice, uma verdadeira referência no fortalecimento das raízes negras no Brasil. A seguir, imagens de um desfile realizado no AfroDai, na década de 90:

 

Em outra entrevista, esta em 1988, para a extinta TV Rio, Dai Bastos problematiza a quase inexistência de salões de beleza especializados em cabelos crespos no Brasil: “Nós precisamos de um espaço, pois não existe, praticamente. Depois de 100 anos de abolição, nós temos dois salões Afro no Brasil”. E vai além: “Nós não temos produtos para o nosso cabelo, para nossa pele, não existe. E o capitalista não tem interesse em fabricar, porque nós estamos consumindo o produto deles, coisas erradas, que fazem mal para nós, para nossa estética. Os produtos químicos feitos para nosso cabelo, são feitos com soda cáustica”. Assista:

 

 

Idalice Moreira Bastos faleceu em 1º de agosto de 2012. O salão e o projeto social Afro Dai foram extintos, mas sua memória permanece viva na herança que deixou entre seus alunos e alunas.