Os editores do Feirenses convidam-me a entrar no “clima do São João”, e a selecionar cinco discos de forró que considero antológicos. Não me faço de rogado, e, em meio à tarefa tão dificultosa, escolho cinco discos que, particularmente, considero essenciais a um bom ouvinte desse maravilhoso ritmo nordestino, mas não sem levar em conta três critérios básicos: primeiro, o quanto esses artistas ou discos representam à cultura nordestina não só como “sucesso”; segundo, passando pelo crivo do tempo, o que esses trabalhos têm a dizer aos dias de hoje; terceiro, meu gosto puramente pessoal, por serem discos que escuto desde menino.

Luiz Gonzaga: a triste partida (1964)

Luiz Gonzaga: A Triste Partida

Apesar de trazer sucessos dançantes como Cantiga de vem-vem e Numa sala de reboco, parceria sua com Zé Marcolino, Luiz Gonzaga poderia ter gravado um disco que passaria quase que em branco em toda a sua carreira (que, aliás, oscilava um pouco àquele ano), não fosse sua música título do LP: A triste partida. Musicalmente, não poderia ser pior: a melodia, uma valsa moderada em duas partes rápidas e repetitivas; harmonia igualmente exígua e maçante; a letra, no entanto, é de uma riqueza poética sem precedentes em toda a nossa música e de significado demasiadamente caro ao povo nordestino, fazendo das redondilhas menores em que foi composta, o maior sucesso poético e musical de um bardo, àquela época, desconhecido do grande Brasil, chamado Patativa do Assaré. Não seria exagero nenhum dizer que, depois do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e do poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto – seus primos ricos, no que se refere ao mundo da literatura –, A triste partida é o texto mais representativo da realidade crua do Sertão nordestino e de seu povo que o século XX nos deu. Alinhavando tradição e realismo, é impossível não se emocionar com a ladainha empregada em quase 10 minutos de música, fazendo-nos lembrar que a maior e mais dolorosa das viagens é aquela em que abandonamos nosso lar sem que queiramos fazê-la. Longe de ser épica, ou ter a glória quase particular de um Odisseu, A triste partida, como afirmou o produtor musical Raimundo Campos é “Os Lusíadas ao contrário, é a dor que fez a grande música nordestina, sem dúvida”, a tragédia de todo um povo; uma dor de tantos que é como se fosse de um único indivíduo; todos partilham, de certa forma, de um sofrimento igual; todos trazem, em seus ombros, a mesma cruz. Se é impossível fazer um bom samba sem dor, muito menos será fazer um bom forró. E o disco ainda nos traz a gravação de Ave Maria Sertaneja, capaz de fazer muito ateu molhar os lencinhos.

Luiz Gonzaga: volta pra curtir (1972)

Luiz Gonzaga: volta pra curtir

Este CD praticamente resume quase toda a obra do Velho Lula. O disco é um resgate, de 2001, do show que Luiz Gonzaga fizera em 1972, no teatro Tereza Rachel, com a produção de Jorge Salomão e roteiro dele em parceria com José Carlos Capinam. E é uma prova do quanto Luiz Gonzaga era querido e aclamado, mesmo durante os ditos “Anos de Ferro”, diferentemente daquilo que o filme de Breno Silveira tentou mostrar, pois um artista como Luiz Gonzaga não precisava de favores nem dos Militares, muito menos de “revolucionários” aos quais ele sabia que não trariam nada de bom ao Brasil. Calúnias à parte, o disco ainda presenteia seu ouvinte com depoimentos de Caetano Veloso e Gil, que, aliás, voltaram, àquele ano, do exílio, e queriam mostrar à juventude intelectual da Zona Sul carioca a importância do Rei do Baião. Poucas obras são tão carregadas de autenticidade como este disco onde Luiz Gonzaga canta, conta “causos” e, além de um trio de forrozeiros de primeira linha, traz a sanfona iluminada de Dominguinhos, que acabara de se rebatizar (antes seu nome artístico era “Neném”). Frisando sua genialidade de intérprete e compositor, podemos ouvir em Volta pra curtir, clássicos como: Asa BrancaBoiadeiroLorota BoaAssum PretoRespeita JanuárioEstrada de CanindéJuazeiro, etc., este disco de Luiz Gonzaga é indispensável não só ao repertório junino, mas à própria história de nossa MPB.

Trio Nordestino: Ô bicho bom (1981)

Trio Nordestino: Ô bicho bom

Apesar do que muitos dos desavisados de hoje podem pensar, o Trio Nordestino é baiano, criado em 1958, na cidade de Salvador – acreditem – trazendo a mais clássica das “formações de forró”: um sanfoneiro, um zabumbeiro e um triângulo. Os fundadores foram Lindú (voz e sanfona), Coroné (zabumba) e Cobrinha (triângulo) que lançaram o primeiro disco em 1962, com a benção de ninguém menos do que Rei do Baião. Os primeiros discos saíram pela gravadora Copacabana e traziam canções de Gordurinha, como Pau-de-arara É A Vovozinha, e Antônio Barros: Chililique, Forró Pesado, e Procurando Tu – até hoje o maior sucesso do grupo, com mais de 2 milhões de cópias vendidas. Mas o disco que destaco aqui é Ô Bicho Bom, de 1981, por ter sido o primeiro de seus discos que eu, ainda menino, escutei, onde podemos encontrar, além da música tema, sucessos como Pitiguari e O Neném. Entretanto, é preciso ressaltar que sua obra, da forma como se enraizou até hoje na cultura nordestina, compõem-se de um único corpo, que precisa ser apreciado como um todo e o mais rápido possível pelas novas gerações. A propósito, o Trio Nordestino existe até hoje, com outra formação, é claro. Atualmente, o grupo é formado pelos herdeiros musicais Luiz Mário – triângulo e voz (filho de Lindú), Coroneto – zabumba (neto de Coroné, também fundador da banda) e Beto Sousa – sanfoneiro (afilhado de Lindú).

Domiguinhos: Isso aqui tá bom demais (1985)

Domiguinhos: Isso aqui tá bom demais

Não há dúvidas de que Dominguinhos, herdeiro direto de Luiz Gonzaga, é o nosso maior forrozeiro, depois do Velho Lua. Mas caso alguém por aqui queira contestar, não há melhor exemplo do que digo sobre esse disco: Olha isso aqui tá muito bom!, publicado pela RCA a mais de 30 anos. Além de firmar a sua antológica parceria com Nando Cordel, Dominguinhos nos mostra, neste disco, toda a sua versatilidade de músico exímio, cantor e compositor. Com produção executiva de Oséas Lopes, arranjos e regência de Chiquinho do Acordeom, sanfonas do próprio Dominguinhos, Sivuca e Chiquinho do Acordeom, violão de José Carlos, baixo de Luisão, zabumba de Francisco Nonato, guitarra de Zé Menezes e ritmo de Manoel Serafim e Hermelinda Lopes, este LP nos agracia, ainda, com as participações de Chico Buarque de Holanda, na música tema, e de Luiz Gonzaga, na regravação de Sala de Reboco. Na instrumental Nipopolitano, a disputa de melhor sanfoneiro é entre o próprio Dominguinhos, Sivuca e Chiquinho do Acordeom, mas quem ganha, obviamente é o ouvinte da boa e sempre eterna música nordestina.

Sandro Becker: Sandro Becker vol. 6 (1986)

Sandro Becker

Sandro Becker pertence a um grupo seleto que disputava ouvinte a ouvinte as rádios nacionais, em meados dos anos 80 e 90. Esse grupo era composto de nomes igualmente antológicos como Zé Duarte, Valdeci Maniçoba, Manhoso, Genival Lacerda, Cremilda e Zenilton. Antes de toda a histeria típica dos arautos do politicamente correto dominarem dos meios de comunicação ao ambiente político, o chamado Forró de “Segundo Sentido” era garantia, ao mesmo tempo, de um bom arrasta-pé e de boas risadas. Esse tipo de música, que para muitos constitui um subgênero do forró, descende de uma tradição anterior à própria história do Brasil, mas que se encaixou muito bem à maneira de ser de nossas terras tupiniquins: a Sátira e a Picardia. Verdade seja dita, a famosa “malemolência do brasileiro”, que na literatura começou com o baianíssimo Gregório de Matos, encontra, nesse alagoano de União dos Palmares, um herdeiro criativo e, a julgar pelas entrevistas que dele tenho assistido, consciente do que faz e do que tal zombaria representa. Numa época em que nada espanta e tudo ofende, sucessos como Julieta – que só no YouTube tem mais de três milhões de visualizações –, Gatinho Angorá, Forró da Bica, Briga no casamento, pertencentes a este LP, além de outros sucessos anteriores e posteriores, ouvir Sandro Becker não deixa de ser uma maneira muito divertida de dar à tanta chatice e neurose mútua, perpetrada por tantos “grupos” e “ismos”, aquilo que os franceses chamam de  bras d’honneur.