Em Feira de Santana inicia-se o debate sobre a extinção do setor de artesanatos no Centro de Abastecimento da cidade. A tese defendida pela Prefeitura Municipal (que já realizou demolições no local) é a de que o espaço servirá à construção do Shopping Popular, iniciativa que pretende absorver os comerciantes informais espalhados pelo centro da cidade, além dos próprios artesãos que atuam no Centro de Abastecimento.
Por outro lado, os artesãos do Centro e movimentos culturais da cidade, a exemplo do Fórum Permanente de Cultura, se mostram contrários à iniciativa. Diz o Fórum: “Apesar do Centro de Abastecimento ter obtido pelo Instituto de Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia – IPAC, registro especial das práticas culturais e coletivas o qual garante a manutenção do patrimônio imaterial relacionado aos saberes e fazeres dos comerciantes locais, a prefeitura de Feira de Santana iniciou no setor de artesanato a demolição para as obras do Shopping Popular, gerando grande mal estar nos comerciantes presentes, os quais sequer foram consultados e escutados pelo Poder Público para realização do ato”.
É importante frisar que o debate sobre a permanência, remoção e transferência de comerciantes populares em Feira de Santana não é novo. Na década de 70, o próprio Centro de Abastecimento foi criado com a intenção de centralizar os feirantes que integravam a maior feira livre da Bahia, localizada no centro de Feira de Santana.
Para iniciarmos uma reflexão sobre esse contexto, segue um texto publicado pelo jornalista, jurista e escritor Hélder Alencar, em 1º de janeiro de 1977, para o Jornal Feira Hoje. À época, ele criticava a extinção da Feira Livre, e fazia uma análise cultural de Feira de Santana:
Feira sem Feira – Hélder Alencar
O futuro secretário de turismo, Recreação e Cultura do município, An-tônio Miranda, em declarações recentes, afirmou que a sua maior preocupa-ção, seria encontrar uma fórmula para que o turista permaneça algumas horas na cidade. Acrescenta que a Feira de Santana é passagem obrigatória dos turistas, mas o, seu intuito é criar alguma coisa p ra fixar o turista, fazer com que ele fique algum tempo.
A missão do novo e jovem secretário seria, sem dúvida, muito mais fácil se a feira-livre de Feira de Santana, a única atração turística permanente do município não tivesse sido extinta, na última segunda-feira em nome do “pro-gresso”, mesmo se sabendo que tradição e progresso podem andar de mãos dadas, principalmente em se tratando de aspecto mais tradicional, mais folclórico e mais cultural de uma terra.
Pobre de igrejas, sem outras atrações maiores, pois centros de abas-tecimento, indústrias e museus existem por toda a parte, a Feira de Santana fica reduzida exclusivamente à sua mica reta e, talvez, à festa de Santana, se os “progressistas” não deturparem o seu sentido e não mudarem o seu modo de ser, como andaram apregoando por aí.
A existência de um museu pouco contribuiu para o turismo, pois ele é muito mais de arte plásticas do que regional, como deveria ser e como constava no seu projeto inicial, tanto que ele se chamava museu Regional.
Outras festas e festividades menores como vaquejada, exposição agropecuária, Kalilândia, Alto do Cruzeiro e tantas outras nada representam para o turismo, muito menos para a recreação, sequer para a cultura.
Desapareceu efetivamente a única atração turística, realmente turística, de Feira de Santana: a sua feira livre. Não convence a idéia de que a feira será permanente, diária, no Centro. Ora, enclausurar a feira livre de Feira de Santana dentro de quatro paredes é a mesma coisa que tirar um peixe d’água: ele não sobrevive, não resiste.
A feira livre de Feira de Santana, que provocou o nascimento da cidade, data de 1713, realizando-se assim há mais de 200 anos. Foi dela que veio o aglomerado humano que mais tarde constituiu o arraial, e foi dela também que veio o nome da cidade: Feira de Santana.
Esses valores são de uma hora para outra destruídos em nome de algo que chamam de “progresso”, mas que não passa de complexo de provincianismo, pois só a retirada da feira mostraria o desenvolvimento da Feira de Santana. O que há de errado em ter uma feira livre? Deixem que os outros tenham seus Centros de Abastecimento; os que não podem ter uma feira livre como a nossa.
O advogado folclorista e pesquisador Fernando Pinto de Queiroz, afirma que “se mudarem a feira para o Centro de Abastecimento o que sobrará para a cidade? Nada. A feira é o que a Feira de Santana tem de diferente e notável. Se perder isto, o que restará à cidade? Se a feira é a única coisa que a distingue dos demais?
O poeta, arquiteto e pintor Juraci Dorea Falcão sentencia “vão acabar a beleza e a poesia da feira, sufocadas pela modernização”.
Sim, o que sobra então à Feira de Santana? Uma Micareta, cuja única coisa excepcional é ser realizada em abril, já que no mais é igual aos car-navais que por aí se fazem e a outras minaretes que por alhures se realizam. Lógico que terá que ser a maior de todas, pois a Feira de Santana é a maior cidade do interior baiano.
O secretário de Turismo a ser empossado no fim deste mês terá muito que pensar, estudar, imaginar para encontrar algo que substitua, nos roteiros turísticos, a feira livre de Feira de Santana. Vai ser difícil a não ser que haja alguma fórmula mágica.
Aliás, na opinião do prefeito José Falcão da Silva não se deve pensar em turismo. Em entrevista concedida à imprensa da capital, na segunda-feira ele afirmou que a Feira de Santana sempre foi uma cidade comercial e não turística. O que importa é o desenvolvimento do comércio.
Diversos administradores divergem, entretanto, da opinião do prefeito de Feira de Santana, quando afirmam que o turismo é uma “indústria chaminé” e não é à toa que o turismo, é hoje, a principal fonte de renda da Espanha.
A Feira de Santana, principal entroncamento rodoviário do país, tinha um enorme potencial para se transformar num centro turístico. Agora, porém, turismo por aqui é coisa do passado. Nada restou, mas nada mesmo, em termos turístico, à Feira de Santana.
As igrejas são pobres, sem estilo definido, a não ser a Igreja do Senhor dos Passos, com seu estilo gótico, raro em construções religiosas.
“O extermínio da feira livre da Feira de Santana foi um abalo tremendo para o turismo local”
O Museu que deveria ser regional, é de artes plásticas, destinando, apenas uma pequena sala aos produtos da região, ele que deveria ser uma casa para mostrar o que foi e o que é que a Civilização do Couro, de vital importância para a colonização baiana.
O extermínio da feira livre da Feira de Santana foi um abalo tremendo para o turismo local, que poderia, agora, inclusive, receber um novo alento.
Alguns, para quem o “progresso”, mesmo desordenado, indisciplinado sem infra-estrutura, tudo representa, dirão que os saudosistas não esqueceram a feira livre, estão chorando o fim da feira, são retrógrados e conserva-dores.
Não há progresso, por mais acentuado que seja para destruir os valores de uma terra, para condenar à morte o mais cultural e folclórico aspecto de Feira de Santana.
O que deveria ter sido feito, planejado, e executado era a higienização da feira livre, bem como deveriam ter sido disciplinados os seus dias e horários de funcionamento. Assim, se a feira livre era uma doença, ficaria curada. A dose de medicamentos que lhe deram, entretanto, foi forte demais: a feira livre de Feira de Santana morreu.
Ela, que era tão livre como pássaro que voa, não poderá subsistir num Centro de Abastecimento, cujos primeiros problemas aparecem mesmo antes da transferência da feira.
Um dia, há algum tempo, a Prefeitura Municipal de Caruaru, em Pernambuco, tentou exterminar a feira livre e construiu um Centro de Abastecimento. O Centro não funcionou e a feira livre continuou, sobrevivendo até os dias atuais.
“Ela, a feira livre de Feira de Santana, que passa a ser, apenas, uma saudade, uma recordação”
Aqui, porém, o fato é irreversível. A feira livre já não existe, pertence a um passado não muito distante e será sempre lembrada por um pedaço que agora foi extirpado.
A feira livre viverá, tão somente nas recordações dos feirantes que não têm medo, receio ou vergonha de defenderem a existência da feira, pois sabem que ela poderia, perfeitamente, viver de mãos dadas com desenvolvimento.
É preciso que se entenda que desapareceu um pedaço da própria Feira de Santana, um pedaço que foi a base para a formação da cidade, um pedaço que está em pé desde 1713, sem causar transtornos, sem trazer intranqüilidade, sem provocar insegurança.
A feira livre, extinta segunda-feira, confundia-se com a própria Feira de Santana, ela que deu forma ao município, ela que atraiu turistas e visitantes, ela que deu tantas fontes de rendas a Feira de Santana, a ponto de ser considerada, em 1975, o principal ponto de arrecadação, ela que sustentou a economia da Feira, quando o comércio era incipiente e as indústrias nem sonhavam em se instalar. Ela, a feira livre de Feira de Santana, que passa a ser, apenas, uma saudade, uma recordação e uma lembrança dos tempos em que os homens sabiam aliar os valores culturais aos bens materiais.
A feira livre de Feira de Santana será lembrada para sempre. Muitos dos que assistiram o seu fim não alcançarão, sequer o primeiro degrau na escada em direção à História.
E a transferência da feira livre gera outro problema, este reconhecido publicamente, pelos que idealizaram o Centro de Abastecimento. O Centro está pequeno, diminuto, acanhado, para abrigar todos os feirantes.
É reconhecido, ainda, pelos técnicos, que mesmo para uma primeira etapa o Centro não atendeu às necessidades da feira livre, da Feira de Santana, que reunia mais de quarenta mil pessoas espalhadas pela praça, ruas e avenidas.
O que às importava, porém, não era saber se o centro abrigava os feirantes, atendia as necessidades da feira-livre. O que importava, acima de tudo, era exterminar a feira imaginando encontrar um lugar na história…