Eles são seres invisíveis na sociedade. Abandonados e fugidos de qualquer normalidade cidadã. Longe dos parentes e amigos do passado, alguns não lembram sequer de sua própria história. Outros a guardam como um tesouro precioso. São poucas vezes notados – geralmente quando se arvoram a pedir ajuda estendendo as mãos. Para eles, qualquer esquina pode virar um ponto de descanso.

Em Feira de Santana, os moradores de rua concentram-se no comércio e em algumas praças e avenidas da cidade. Muitos deles não são alfabetizados e nunca tiveram trabalho de carteira assinada. Problemas familiares e a desestrutura da moradia são alguns dos causadores desse destino. O consumo de drogas também é um ponto bem comum para quem se vê nesse contexto.

Renildo, conhecido como Rene, ex-morador de rua, conta ao Feirenses que a população o tratava como ser inferior. Desprezando-o com palavras chulas e atitudes agressivas. Ele viveu oito anos de idas e vindas na rua. Um ponto que o abrigou por muito tempo foi a esquina atrás do Feira Tênis Clube. Ali, houve casos de populares o chamarem de “vagabundo”, “monstro” e “ladrão”.

“Mulheres passam com medo, colocando a bolsa para frente, prevendo a possibilidade de serem roubadas. Poucos cumprimentam para dizer algo agradável. Alguns ajudam com moedas. Uma vez, no horário das crianças passarem para ir à escola, a mãe de uma menina passou ignorando todos os moradores de rua, enquanto a menina passou cumprimentando a todos saudando com sorriso e um ‘bom dia'”, nos conta.

“A gente bebe para nos mantermos mais acordados, ficar mais esperto e livrar de algum mal que outro irmão que vive na rua possa fazer”.

Para Rene, uma das melhores formas de um morador se manter ativo é consumindo bebidas alcoólicas. “A gente bebe para nos mantermos mais acordados, ficar mais esperto e livrar de algum mal que outro irmão que vive na rua possa fazer”.

Em alguns casos, eles chegam a brigar por drogas, roupas, cobertores e até comida. Não podem deixar nada à toa para não ser tirado. Alguns deles usam facas, “chunchos”, pedaços de ferro, vidros, giletes e pequenos tipos de armas usadas para se defender. Rene diz que a bebida o deixava mais agressivo, mas com ela sentia-se seguro.

Nos oito anos que viveu na rua, Rene também chegou a dormir na Praça de Alimentação da Avenida Getúlio Vargas. Fez muitas amizades com os skatistas e hippies que transitam no local. Ao dormir na praça, segundo ele, alguns policiais iam de surpresa retirando ele e outros amigos. Conta que já houve casos de agressão por parte dos policiais e seguranças que protegem o local.

“Era para eles nos protegerem, não nos agredirem. Estamos em um local público. Eles nos confundem com ladrões e traficantes, mas somos diferentes, de outra classe, de outra família”.

Ele lembra de outros pontos onde já dormiu: “Outros lugares de abrigo eram em frente às lojas e atrás de barracas do comércio. Mercadores expulsavam por achar que somos pessoas ruins e que poderiam difamar o lugar. Dormíamos em frentes às lojas, aproveitando as coberturas para proteção do frio e da chuva”.

Rene demonstra indignação quando se refere aos órgãos públicos. Ele entende que o Estado poderia agir e colocá-los em um lugar seguro. Por não conhecerem ao certo quem é, e o porquê de estarem na rua, a ignorância e o receio levam a maioria das pessoas a os tratarem mal.

Atualmente, ele apoia outros moradores de rua em um projeto que participa. Essa iniciativa, o Movimento Nacional da População de Rua, tem o objetivo de se aproximar da população de rua e diagnosticar o que eles necessitam. Indicam órgãos que eles possam resolver necessidades e ter encaminhamentos para melhores condições de vida. “Alguns órgãos dão auxilio quando necessário. Mas não asseguram todos os direitos. O centro de convivência da população de rua que existe não é suficiente.”

Um morador de rua voluntário

Edcarlos Venâncio, ex-morador de rua, e também participante do Movimento Nacional da População de Rua, nos conta que por meio de um estudo em uma instituição religiosa, que se dedica à análise social dos moradores de rua, um amigo o convidou a viver esta experiência. Passou cinco anos morando na rua. “Muitos vão para as ruas por vínculo rompido com a família, ficam fragilizados, alguns vão para outras cidades em busca de trabalho e acabam não encontrando, e outros vão por causa da bebida e outras drogas”.

“Dormir no papelão me fez valorizar ainda mais a minha vida.”

Convivendo com os moradores ele conheceu a realidade, chegando a dormir nas praças de várias cidades do Brasil. “Eu compreendi que os moradores de rua são homens e mulheres trabalhadores que não tiveram um bom contato com a vida. Tem uma poesia de um amigo meu onde ele dizia que não somos lixo e nem bichos, mas somos seres humanos nos desencontrando com a vida. Dormir no papelão me fez valorizar ainda mais a minha vida. Não propago a ninguém que estude e tenha uma vida confortável a fazer isso. Mas saibam que um personagem de rua tem algo para ensinar. A nossa luta está ativa há dez anos, de maneira organizada. Tudo isso aconteceu (a criação do Movimento), por causa de uma chacina que houve em uma Praça de São Paulo. Na Bahia, o movimento está presente em duas cidades, que é Salvador e Feira de Santana.”

Histórias de vidas diversas

Alguns moradores de rua com quem conversamos se mostraram intimidados e nervosos, chegando a agir de forma agressiva. Para ter o que comer e consumir drogas,  alguns acabam praticando assaltos, mas a maioria procura trabalhar em pequenos serviços, ganhando o sustento, e outros, esmolam.

Silvio Santos reside em um posto abandonado de gasolina. Morava com suas filhas e esposa num ambiente confortável. Consumindo drogas, e gerando problemas de relacionamento, ele saiu e deixou a casa para os familiares. Para não roubar, passou a trabalhar com reciclagem. É alfabetizado, mas não chegou a concluir os estudos e nunca trabalhou de carteira assinada, nem obteve cursos que o ajudasse a se fixar em um emprego. Trabalhou como flanelinha, carregador de carga e com conserto de calçados. Ele admite que não é bom onde está, mas para não exigir da família, insiste em ficar nas ruas.

“Eles trabalham com jardinagem e dormem na rua há dois anos. A esposa de José Nilson o largou e o deixou com a filha pequena.”

Na Avenida Presidente Dutra, ao lado da Rodoviária, dorme seu José Nilson e uma menina de dez anos, sua filha. Eles trabalham com jardinagem e dormem na rua há dois anos. A esposa de José Nilson o largou e o deixou com a filha pequena. A menina não estuda nem tem qualquer assistência de saúde. O pai admite que não é esta a vida adequada para a filha, e vive pedindo ajuda para sair dessa situação.

O curioso é que seu José Nilson, mesmo não tendo um grau elevado de estudos, se distrai fazendo pequenas poesias. Ele diz, expressando a sensibilidade que as ruas não tiraram: “A poesia é a coisa mais gostosa que existe”.