“Fulana foi uma mulher muito avançada para a sua época”. Volta e meia, quando conhecemos uma artista de uma fase específica ou uma personalidade de destaque, nos deparamos com frases como esta. Se falamos de homens à frente de seu tempo, nós os chamamos de gênios. Às mulheres, apenas nos referimos assim porque superaram as barreiras de seu tempo.
Nessa tentativa de marcar momentos históricos em que a exclusão de mulheres, em relação a determinados aspectos da sociedade, seria mais aguda, acaba-se por estabelecer uma hierarquia entre as chamadas mulheres “avançadas” e as “atrasadas” por tabela (pois só falamos em avanço comparativamente a atrasos, certo?). Provavelmente, o otimismo sedutor de acreditar que o nosso contexto atual seja melhor em termos de conquistas sociais – não só para as mulheres – explique essa hierarquização involuntária. Mas isso não seria desculpabilizar a nossa estrutura social usando o contexto histórico como principal escudo? Voltemos à nossa história política feirense para examinarmos mais um pouco essa questão.
Feira de Santana, 1833. Nossa primeira Câmara Municipal foi instalada: sete lugares ocupados, nenhum por uma feirense. Poderíamos dizer: Putz! Claro, em pleno século XIX, em que o modelo burguês finalmente triunfou – incluindo a concepção de família, desresponsabilizando o homem dos cuidados do lar e delegando às mulheres essa função. Tudo bem, tudo bem… Então, vamos ao século XX: 1932, o voto feminino brasileiro foi assegurado, sofrendo umas turbulências em 34, mas tomando contornos mais definidos em 1946, com a obrigatoriedade do voto se estendendo às mulheres. Desde 32, elas também poderiam ser eleitas. Essa conquista do voto não veio de graça: muito barulho foi feito, como a passeata da professora Deolinda Daltro, que fundou o Partido Republicano Feminino, em 1917.
Em meados dos anos 30, a Escola Normal da Feira de Santana formou as primeiras turmas de professoras para as salas de aulas feirenses. O jornal Folha do Norte deixou como testemunha vários depoimentos das futuras educadoras, fazendo uma cobertura completa deste acontecimento. Se algumas de nossas mulheres estudaram, dificilmente poderíamos acusá-las maciçamente de “ignorantes” ou “sem instrução”. Cai por terra a hipótese da falta de instrução para explicar a ausência de mulheres na nossa Câmara. Segundo Lélia Vitor Fernandes de Oliveira, em texto publicado na revista Carta da Feira, já em 1934, a professora feirense Edith Mendes da Gama e Abreu se candidatou à Assembleia Constituinte Federal.
A segunda legislatura da Câmara de Feira, entre 1951-1955, repetiu a mesma característica anterior: nenhuma mulher eleita. Seria desinteresse total das feirenses quando se trata de participação política? Não é o que parece. Em 1950, a professora Helena de Senna Assis foi a primeira mulher a disputar um cargo eletivo na Câmara Municipal, de acordo com Cristóvam Aguiar do blog Sempre livre. Mais tarde, em 1967, a também professora Laura Pires Folly ficou na primeira suplência, no lugar de Hugo Navarro da Silva. Lélia Vitor Fernandes de Oliveira, em Inquilinos da Casa da Cidadania: Feira de Santana, destaca que Folly “enfrentou a discriminação no ambiente de política, pois foi a primeira mulher a assumir o cargo de vereadora.” (p.204)
“Espaços como a política (num sentido restrito, já que “política” engloba relações além dos meros mecanismos legais) são espinhosos para alguns grupos sociais”
Folheamos o livro de Oliveira e só encontraremos outra vereadora em 1989: Norma Suely Oliveira Mascarenhas, que era casada com George Américo Mascarenhas, “um líder dos sem terra, que liderou uma invasão no bairro que hoje leva o seu nome e que fora assassinado tragicamente. Por esse fato, ela arrebanhou um bom número de eleitores, conseguindo um total de 1.151 votos, sendo a primeira mulher a ser eleita por voto direto do povo à Câmara Municipal” (p.232-233). Na próxima eleição, Mascarenhas arrancou uma quantidade de votos irrisória. Seria por que ela não foi “avançada para a sua época” e só se elegeu às custas do marido falecido? Estranho, porque só vamos ouvir falar de outra mulher no nosso cenário político em 1992, com Eliana Maria Santos Boaventura. E mais nenhuma. A partir daí, apenas em 2004, elegem-se Cíntia Daltro Machado e Eremita. Já em 2008, Cíntia Machado e Eremita, novamente, e Gerusa Sampaio. Atualmente, temos pela primeira vez, quatro mulheres: Neinha, Eremita, Cíntia Machado e Gerusa Sampaio. Estamos falando de 2015, o nosso suposto “momento melhor se comparado ao passado”, enquanto a nossa Câmara abriga tão poucas representantes. No executivo, nadica de nada. Já ouviu falar em “prefeita de Feira de Santana”? “Apois”.
Espaços como a política (num sentido restrito, já que “política” engloba relações além dos meros mecanismos legais) são espinhosos para alguns grupos sociais, não somente para as mulheres e muito menos com exclusividade para as citadinas: outro dia, eu li um manifesto de uma jovem líder dos Arapium, Auricélia Fonseca, reivindicando mais voz política para o seu povo. Se entrarmos no quesito racial, as coisas complicam mais ainda em Feira: das únicas 7 vereadoras eleitas, nenhuma é negra, o que nos deixa de boca aberta se levarmos em consideração que a maioria dos feirenses são… negros.
Longe de mim ser fatalista quanto à participação de mulheres, em Feira e em outras partes do Brasil e do mundo. No início deste ano, a ONU Mulheres divulgou o Mapa de Mulheres na Política, que mostra alguns avanços, mesmo mais lentamente do que o ideal, informando que 22% de mulheres estão nos Parlamento, no mundo. A região das Américas registra o maior índice, com 26,4%.
Além disso, várias organizações de Feira merecem atenção, como o Coletivo de Mulheres de Feira de Santana, MOMDEC (Movimento de Organização de Mulheres em Defesa da Cidadania ), Rede de Mulheres Negras de Feira de Santana, entre outros que visibilizam pontos cruciais para uma maior igualdade de gênero em nossa terra. Porque esta pouca presença das feirenses nada mais é do que isso: uma desigualdade de gênero e nada tem a ver com a falta de mulheres mais “avançadas”. As sete representantes mencionadas não são figuras inatingíveis em relação às demais feirenses. Pensar em uma política mais inclusiva, não apenas para as mulheres, é vislumbrar uma democracia mais forte, pois onde há exclusão sistemática, poucas vitórias sociais serão alcançadas.