Humberto de Oliveira nasceu em Feira de Santana em 1951, mas passou sua infância na Fazenda Ipueira, em Barra de Mundo Novo, entre livros, revistas velhas e jornais antigos que lia em voz alta para o encanto do avô, que o alfabetizou na larga varanda, tendo como mesa o tosco banco de madeira.

Graduado em Filosofia pela UCSal (Universidade Católica do Salvador) e em Letras com Francês pela UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana). Mestre em Letras pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e doutor em Literatura Comparada pela Universidade d’Artois (França), Humberto é Professor de Língua e Literatura francesas do Departamento de Letras e Artes da UEFS, onde integra os grupos de pesquisa dos Programas de Pós-Graduação em Desenho, Cultura e Interatividade, Profissional em Letras e Literatura e Diversidade.

Por seu trabalho em prol da língua francesa, Humberto de Oliveira mereceu o reconhecimento do governo francês, que, em 2009, lhe concedeu a comenda de Cavaleiro da Ordem das Palmas Acadêmicas. Além disso (tudo!), ele é tradutor e editor da revista literária bilíngue Portal Literário-Portail Littéraire.

O novo livro de Humberto de Oliveira

Narrativas de Alguma Esperança

No próximo dia 2 de dezembro (sábado), às 19h, no Museu de Arte Contemporânea (MAC), Humberto lança “Narrativas de alguma esperança”, coletânea de contos que sai pela Artgraf editora. É mais uma publicação de um autor feirense que já teve confirmado seu talento como ficcionista com o seu primeiro livro de contos, intitulado “Colheita insólita” (2003), que mereceu uma elogiosa apresentação da crítica literária Gerana Damulakis.

Para entrar em contato com um pouco das “Narrativas de alguma esperança”, segue o conto “A Reivenção do Natal”, que Humberto antecipou com exclusividade para o Feirenses:

***

A Reinvenção do Natal

Humberto de Oliveira

Conto extraído do livro Narrativas de Alguma Esperança, 2016

Era véspera de Natal e ela se angustiava diante da penúria em que viviam desde que a fábrica fechara e seu marido não contava mais com a regularidade do salário em cada fim de mês. Por que seria mesmo que ele perdera o emprego? Ela não queria acreditar nas palavras do pastor Adroaldo que insistia em afirmar que se devia à perda das graças divinas, o exercício demorado do poder do diabo sobre as almas humanas em pecado. Algo em seu coração a fazia ouvir com velada suspeita as palavras daquele homem esquálido, corda muito apertada de um instrumento dissonante aos seus ouvidos, sempre nervoso em seu desejo de parecer muito sensato, brandindo versículos e capítulos, misturando tempos, atravessando discursos e livros. Não era por ele ser magro, ou enfezado, que também nunca dera crédito ao seu antigo confessor, o padre Josué, de doces sorrisos e sermões suntuosos aos domingos. Ela sempre o olhara como a um livro aberto só que escrito em língua estrangeira. Era outro que não parecia perdoar as fraquezas da alma, muito menos aquelas do corpo, logo ele que devia trazer cortado bem rente todo broto por pequeno que fosse de algum desejo. Devia. Pois sim. Até que, de repente, a igreja amanhecera fechada. Trazendo sua avó para unir-se às outras Filhas de Maria, como faziam em cada manhã de terça-feira, deram com a cara na porta. E então ela conheceu naquele amanhecer o escândalo sussurrado com a velocidade possível daquelas línguas sempre ativas em bocas murchas. Pedaços de suspeitas, vozes que buscavam, com vigor, creditar ao diabo as maledicências que passeavam de ouvido a ouvido, deslizavam na saliva do jejum. O que acontecera mesmo? Segundo sua avó, o pobre padre esquecera que o demônio podia disfarçar-se em crianças, ou, principalmente para quem carregaria dificuldades de ver-se no mundo, na forma mais apreciada pelo maligno: adolescentes ainda impúberes, em cuja carne o jejum demorado tende a contorcer-se, expandindo-se ante o olhar desviante, resvalando em formas apenas entrevistas, sob o manto esmagador da ignorância e do medo. Para ela, no entanto, que conhecia as alegrias da carne, o diabo, se existia, podia muito bem estar guardado em cada ser humano, esperando a hora propícia para manifestar-se, surpreendendo o indivíduo que devia atrapalhar-se consigo mesmo, tropeçando em suas próprias fragilidades escondidas, mas que bastava acender a luz para que todo o mal, qualquer mal, toda sombra se desfizesse como o medo na escuridão do quarto da infância. Quando ocorrera? Quem jamais saberá, ao certo, o que ocorrera, quanto mais quando? Ela percebeu sem susto, a imaginação ativada, recompondo com traços fortes o tênue desenho do não-dito, uma certa dissipação de qualquer surpresa, como se a notícia agora circulante apenas viesse jogar luz sobre uma vasta área de sua consciência até então encoberta, adormecida. Como se ela jamais pudesse ter confiado na excessiva dureza das palavras apontadas para os fiéis em cada sermão, lanças e espadas que empurravam ao fogo do inferno toda fraqueza humana. Desiludida com o padre que não se aguentara em sua carne enlouquecida, ela começara a frequentar um outro templo que se instalara nas vizinhanças, na garagem que ficara vazia, depois que os donos tiveram que vender o carro, para enfrentar os longos tempos depois do fim do seguro-desemprego. Por isso, tendo uma boa memória, ela se recusava a ver a demissão do marido como um castigo divino. Via o pastor Adroaldo portando as mesmas armas da intolerância e do medo, mirando com balas de fogo nos corações sedentos de algum refrigério, como o padre já o fizera. Como outros tantos pastores, esse também não tinha nenhum amor pelas almas famintas de compaixão que procuravam luz no conforto das palavras. Buscava apenas intimidar, amedrontar, dominar pela força. E ela se recusava a acreditar num deus que pudesse punir tanta gente e, dentre todos, também condenasse ao sofrimento aquele homem, o seu marido, cuja generosidade se derramava nos olhos cor de mel e nos cuidados que ele lhe dispensava, agradando sua alma e também o seu corpo de mulher exigente. Resolveu não mais voltar para ouvir as pregações do recém-convertido, que já comprara um novo automóvel e se preparava para mudar para uma casa mais espaçosa, num bairro menos pobre, graças, segundo ele, às bênçãos divinas reconquistadas, mas, segundo ela, graças aos dízimos dos crentes desempregados que cada vez mais se avolumavam em cada culto, buscando assegurar um lugar no céu e a prosperidade na terra. Foi então que ela decidiu que seria ela própria a sacerdotisa de seu Deus e Senhor, uma divindade toda especial, cuja representação ela não encontrara em nenhuma das igrejas percorridas, pois não tinha rosto porque era muitos e sendo todos era um só, embora pudesse ter muitos nomes. Mas ela gostaria de saber por que seu homem ficara desempregado assim de repente, juntando-se à fila de outros amargurados nesse mundo que era dor, mas também alegria, prazer e agonia. E como a resposta não surgia em sua mente, talvez pelo sentimento de culpa por não estar frequentando igreja nenhuma, ela, que queria conversar com Deus, cada vez mais entoava preces e mantras. Enquanto não descobria as razões para essa travessia no deserto sem o anúncio prévio do merecido maná, ela resolvera buscar mediadores entre seu coração angustiado e o Criador que não queria colocar um emprego no caminho do seu marido, ou, se já o fizera, fora com desígnios tão estranhos que escapavam à sua ignorância, impotente que era para reconhecer os sinais da ajuda divina. O certo é que o seu homem valoroso andava pelas ruas, gastando a sola do sapato já remendado nas velhas calçadas, por toda a cidade, vendendo apostas do jogo do bicho. Era dessa forma, parando na porta de cada casa ou ponto comercial, querendo tornar-se profeta, desvendando sonhos de contornos difusos, interpretando lembranças de requentadas memórias, era assim que ele estava conseguindo trazer algum dinheiro para evitar que a fome se instalasse de pernas cruzadas e braços abertos, na mesa de sua casa, com três meses de aluguel atrasado. Ela trouxera para o quartinho dos fundos todas as imagens de fortes protetores. Yemanjá em sua nudez mal coberta pelos longos cabelos negros, parecidos aos seus e que, como Mãe que devia ser,- ela não estava bem certa disso-, entenderia sua aflição diante da insegurança de criar seus meninos, de vê-los educados e bem vestidos. Acrescentara também ao seu altar improvisado a imagem em louça do São Jorge montado em seu cavalo e cuja lança decerto mataria todo o mal que eventualmente pudesse ameaçar sua família. E não se esquecera de São Francisco de Assis, protetor dos pobres e oprimidos, como eles e seus vizinhos. E Nossa Senhora das Graças, divina mediadora, carregando o Menino Jesus, e a quem Deus dizia sim a todos os pedidos, era o que se falava. Cada uma dessas imagens ao lado da Bíblia Sagrada, em edição luxuosa, reluzente no dourado antigo. Mas nem todo bem, nem todo mal era conhecido dos cristãos, que o mundo era vasto e a humanidade diversa. Por isso, sabendo que entre os céus e a terra deveria haver mistérios insondáveis, ela acrescentou à sua legião de intercessores a imagem do Preto Velho, que tendo conhecido o horror da escravidão assim mesmo não se envenenara de ódio e que, meditando sobre as coisas da vida, enquanto fumava seu cachimbo, ensinava a vencer o orgulho, a inveja e a intolerância, sendo também capaz de escutar as vozes dos que já não estavam sobre a terra. E, completando a legião de apoiadores, ela trouxera, comprada na feira livre, depois de percorrer as barracas de artesanato, a imagem que lhe era tão cara: o Caboclo, o mais bravo representante do seu povo e da sua terra, a quem ela outorgaria, a partir daquele dia, a missão de ser seu mais querido conselheiro diante de assuntos aparentemente triviais, mas que, se não bem observados, poderiam provocar dores e quebrantos de toda a ordem.

Desta forma, ela passara a conhecer e utilizar plantas e raízes, frutos e folhas para o trato de dores do corpo e da alma e também perturbações da mente. Por isso, cercada de mediadores, ela parecia ganhar um pouco mais de confiança a cada dia, recobrava forças e energias para enfrentar as incertezas que não cessavam com o anoitecer. Nessa tarde de véspera de Natal, de olhos fechados e braços abertos, ela invocara todos os seus santos, sua legião de guardiões para intercederem junto a Deus. O Natal se aproximava e era preciso que um sopro de nova esperança reanimasse os corações de suas crianças, reforçando nelas a crença na renovação do amor na terra. Ela diria depois que fora nesse momento que ela se lembrou do estrangeiro que passara gritando por sua porta na última semana, fazendo com que ela quase deixasse queimar o feijão na panela. Ela tinha estremecido ao ouvir o vozeirão, tivera medo que fosse o dono da casa atrás do dinheiro do aluguel. Não era. Ela ouviria o que o homem dizia com um meio sorriso e abanando a cabeça três vezes, negando como Pedro. Por isso um rubor lhe queima a face. Respirando fundo, ela faz o sinal da cruz e sai de sua capela improvisada com uma resolução tomada. Carregando o neném nos braços e a outra garotinha pela mão, de cabeça baixa ela atravessaria a Rua Direita, encontrando no silencioso olhar das mulheres um sentimento que ela jamais saberia ao certo se era compaixão ou raiva. Seguia com passo firme, pensando-se protegida por suas crianças e por sua aliança na mão esquerda, mas achando longe demais o percurso. Somente quando chegou à Avenida Senhor dos Passos é que respirou menos agitada, embora seu coração sempre entontecido ainda palpitasse. Pegando o cartão de visitas ela conferiu o número da casa. Tocou a campainha e agradeceu quando uma mulher de cabelos cortados bem curtos abriu a porta. Pensou estar correndo um risco demasiado grande ao entrar em contato com aquela gente de costumes tão diferentes dos seus. Achou estar pisando sobre uma ponte pênsil que balançava demasiadamente ao sopro forte do vento Leste. Sua honra de mulher casada não poderia estar em jogo? E, ela sabia, naquele momento, dos riscos que estava correndo. Mas sua decisão fora tomada, e ela estava ali. Para calar a voz da maledicência, trouxera consigo suas filhas, escudos vivos que a protegeriam no retorno, quando tivesse de atravessar de novo a rua das putas. Seriam seus anjos protetores, pois a uma Mãe com o filho nos braços até mesmo o mais bruto dos homens não deveria respeitar? Respirando fundo, tomada por uma segurança que ela não sabia ao certo de onde vinha nem por que, entrou no vasto salão cheio de espelhos, entregou Bárbara a Aninha que se olhava assustada ao ver-se refletida em tantos espelhos, embriagada também com tantos perfumes, e sentou-se na poltrona. De olhos fechados, ela aguardou que o homem se aproximasse e lhe tocasse a cabeça com mãos macias, escorregadias sobre seus cabelos, medindo madeixa por madeixa, analisando fio por fio, enquanto conversava em voz baixa, em outra língua, com a mulher. E, contendo as lágrimas, mesmo sem olhar, tentou ainda pedir que não lhe deixasse a nuca exposta, ela que se achava completamente nua quando o marido, na noite morna de desejos, lhe levantava os cabelos para o beijo amoroso. A garota, trazendo a pequenininha enganchada nos quadris, aproximara–se dela perguntando tá chorando, Mãe? Enxugando na barra do vestido aquele pranto nervoso, ela sorriu com carinho para suas garotas dizendo que estava tudo bem, que se sentassem. A mulher lhe trouxe um copo d’ água e sorria ao dizer coitada, como é boba! Sofrer por tão pouco! Onde já se viu? Ela não disse nada e assistiu à devastação de seus cabelos, uma prenda que conservara, até então, orgulhosa de fazer inveja às outras mulheres, ao trazê-los escovados e brilhantes ao final de cada tarde, passeando de braços dados com seu marido. Ou simplesmente porque gostava de ver seu esposo esconder o rosto sob aquele manto enquanto lhe beijava os seios, encontrando em seu corpo, como ele lhe dizia, as merecidas férias que ele devia ter, o refrigério para o tórrido verão dos dias incertos. Ela se recusou a olhar o rosto do homem, quis ignorar a mão estendida num cumprimento polido, resmungou um obrigado sem ênfase e arrastou suas meninas. Carregando Bárbara apertada ao peito e segurando firme a mão de Aninha, deixou-as na casa de Maria Nina, que a olhava entre espantada e envaidecida da força daquela cunhada destemida. Voltou ao Centro e entrou nas lojas de brinquedos, depois na Confeitaria Aurora. Regateou com voz firme, mas não temeu pechinchar quase implorando, tornada cigana, repentinamente, nos balcões das lojas. Na Padaria da Fé fez novas compras. Na Imperatriz comprou um par de sapatos novos para seu marido. O cansaço não era menor que sua alegria que, num crescendo, tomava seu peito, embriagava sua alma. O entardecer chegara e ela se tomava de uma pungente emoção, sussurrava preces, entoava cânticos, enquanto andava. Ante o olhar assustado das suas vizinhas, ela sorria agora cheia de orgulho, quase arrogante em sua proeza, arrastando atrás de si um carrinho de compras empurrado por um carregador. Antes do Ângelus, toda cheia de contentamento, ela já trazia a mesa arrumada, uma árvore improvisada na sala de visitas, onde as imagens de seus Santos e Entidades cercavam um Menino Jesus entre vacas, ovelhas, jumento e camelos. Quando todos voltassem para casa, temerosos da pobreza, afrontados pela alegria consumista das famílias com mais dinheiro, ela podia já imaginar a cena habitual: Zorilda segurando as duas sobrinhas com medo de perdê-las, os meninos ficando adolescentes, todos voltando da escola, e seu marido retornando Deus sabe como, no fim de mais uma tarde, a fadiga ensombreando o moreno da face. Foi intuindo a expressão que teriam ao compreender seu gesto tresloucado que todo temor de ser censurada desaparecera do seu coração. Ela poderia olhar seu companheiro nos olhos, ciosa de ser compreendida. Certa de ser uma grande sacerdotisa e de estar conectada ao Criador, ela bendizia sua legião de intercessores e sentia-se também divinizada ao ver que, ao vender seus cabelos, ela garantia a esperança no coração de sua família, evitava que a sombra do ressentimento penetrasse em sua casa. Ela tinha acabado de reinventar o Natal.

 

***

Recapitulando…

O QUÊ: Lançamento do livro “Narrativas de alguma esperança”, de Humberto de Oliveira

QUANDO: Dia 2 de dezembro (sábado), às 19h

ONDE: Museu de Arte Contemporânea (MAC)