Ainda é possível encontrar mercearias na terra de Lucas, embora não seja missão fácil. Elas resistem com bravura à avalanche de mercadinhos e armarinhos. Mantêm-se fiéis ao propósito de manter viva a história.
Não deve ser moleza ser dono de mercearia. Ter que assistir passivamente à burocratização das relações comerciais com o avanço tecnológico e a informatização exigindo, sem clemência, total devoção. Máquinas de cartão de crédito, leitor de códigos de barra, catálogo virtual, tudo isso é um sacrilégio. Dono de mercearia que se preza guarda tudo na cabeça. Nunca fez um balanço ou inventário, e espera nunca precisar. Ele não tem visão empreendedora. Mercearia é poesia! É capitalismo retrô.
Dono de mercearia não é empresário. Ele é curador. Mas também é alquimista, às vezes mago. E profeta. E também artista. Quem nunca, quando criança, o via desaparecer atrás do longo balcão de madeira e vidro com seu caminhar lento e soberano por entre as estantes, como quem sabe o que está fazendo. Não, eles não têm nenhum treinamento em atendimento ao cliente ou pós venda. Aprenderam cedo que ninguém vai à mercearia fazer amizade ou terapia. Falam só o necessário, porém, te chamam pelo nome. Nível básico da gentileza comercial.
“Não faz muito entrei numa mercearia aqui em Feira. Pequena, e que mantinha as tradições”
Uma mercearia original, dessas que não se deixaram seduzir pelas ‘mega-stores’ modernas, mantém sempre as teias de aranha em seus devidos lugares. Arrumam seus produtos pelo critério da facilidade de pegar e da utilização de todos os espaços. Pode parecer estranho ver mortadelas penduradas ao lado de ursos de pelúcia e cachaças dividindo balcão com cartões micro SD (sim eles tem). Mas não queira entender. Coisas de gênios. Não se questiona. Tudo ali obedece a uma ordem superior e cósmica. Deve-se aceitar. Não é sinal de desleixo a manutenção do cartaz de coca-cola da década de 90, é um subversivo manifesto contra o descarte desnecessário. Algumas já cederam à diabólica tentação das sacolas plásticas, mas aqueles poucos que lutam pela causa ainda embrulham num papel rosado amarrado com barbante. Não por canguinhagem, mas por consciência global. Mercearia é sustentabilidade.
Não faz muito entrei numa mercearia aqui em Feira. Pequena, e que mantinha as tradições. O dono, sentado, percebe minha presença e lança o ‘diga aí’, sem olhar pra mim, mantendo o estilo. Pedi uma cartolina rosa. Ele me olha como se tivesse dito uma senha. Logo ele desaparece entre as estantes abarrotadas. Não foi difícil imaginar que ele havia entrado numa porta secreta e saído num depósito enorme com centenas de Oompa-Loompas. O preço? O dobro do que normalmente pagava. Foi então que percebi que era o couvert, uma taxa de manutenção da história. Paguei. Pelas mercearias.
Nota do Editor: as fotos que ilustram este artigo, feitas pelo fotógrafo Val Silva, são da Mercearia São José, na Senador Quintino, administrada por Seu Zequinha há 37 anos. Ainda hoje ele tem a caderneta da conta dos clientes, e reserva o pão diariamente para os “clientes certos”.
A máquina do pó de café e a balança, pura nostalgia. Só faltou a baleira de vidro, saudades…
Val Silva, nosso fotógrafo, tirou a foto da baleira, Rafael. Veja:
Isso é uma reliquia rs Muito bom saber que ainda existem lugares que preservam memórias. Obrigado pela foto Danilo/Val e bom fim de semana!
gostei da matéria, volteia a minha infância, quando eu ia mercearia comprar pão, carne de sertão, tubaína, mortadela…
Gostei do texto, saudosismo em alta,
Parabéns!! belíssimo texto e imagens que remetem a doce lembrança do passado.