Frequentemente, ouvimos dizer que Feira de Santana é uma cidade perigosa, devido ao assustador número de assaltos e assassinatos. Para se ter uma ideia, Feira esteve em 144° entre as 500 cidades mais violentas no Brasil, no ano passado. Como se fosse uma história feirense de terror, contada para crianças desobedientes – quem se lembra do famigerado Homem do Saco? – , o temor às ruas cristalizou-se de maneira tão forte no nosso imaginário que, ao atravessarmos as avenidas principais da cidade, a partir das 18h, mal veremos pedestres circulando com a tranquilidade esperada de um final de tarde. O medo instalou-se no cotidiano da nossa cidade.

A violência urbana é incontestável, assim como outras formas de violência que acontecem diariamente, mas não falamos com tanta naturalidade. Normalmente, quando pensamos num criminoso ou num agressor, vislumbramos monstros e vilões que perdem a humanidade quase por completo. Mas esquecemos dos monstros que estão ao nosso lado ou mesmo em nossas casas. Eles são filhos de uma hierarquia sexista estrutural. Esses monstros são contraditoriamente humanos. Ou serão humanos contraditoriamente monstruosos? Deveríamos chamá-los de monstros?

“A violência contra a mulher é bastante perigosa justamente por essa sutileza: não incomoda a todos, como no caso da violência nas ruas.”

O machismo traz à tona essas dúvidas. Afinal, como acreditar que aquele vizinho, tão cordial, insulta, agride e humilha sistematicamente a esposa? Como compreender que o namorado, antes gentil e carinhoso, transformou-se no marido violento? Ou que o pai, aparentemente amoroso, tolhe a liberdade de sua (s) filha (s), embora seja muito mais concessivo com o (s) filho (s)?

A violência contra a mulher é bastante perigosa justamente por essa sutileza: não incomoda a todos, como no caso da violência nas ruas. Acrescente-se que, geralmente, é confundida com alguns dos valores familiares, propagados a cada geração, tais quais o respeito incondicional aos pais ou a luta pela manutenção do casamento – um vínculo afetivo supostamente indispensável à qualquer mulher “direita”. Muitos pedidos de socorro são abafados em nome da “união da família”, mesmo que seja a qualquer preço.

Os laços afetivos das vítimas misturam-se a esses ideais, que são fortemente enraizados em nossa sociedade. Certamente isso pode esclarecer, em parte, o porquê de muitas mulheres, como a própria Maria da Penha, só se afastarem de seus agressores depois de um desfecho estarrecedor: no caso da idealizadora da Lei Maria da Penha (Lei 11340/6|Lei n°11.340), a perda dos movimentos das pernas, em decorrência de um tiro. Felizmente, o número de denúncias registradas na DEAM (Delegacia Especial de Atendimento à Mulher), em Feira, subiu para 80%, no início do ano, o que demonstra uma maior conscientização quanto à importância de dizer “chega!” ao machismo.

Histórias das mulheres vítimas de violência em Feira

Em entrevista ao Feirenses, Maria Luiza da Silva Coelho, coordenadora do Centro de Referência Maria Quitéria (CRMQ), um espaço feirense responsável pelo combate e prevenção à violência doméstica, relata um caso semelhante ao de Maria da Penha: “Outro caso que emociona toda a equipe, é de uma mulher que entrou no CRMQ numa cadeira de rodas, fruto de uma brutal violência e que por um momento quando hospitalizada a mesma estava praticamente desenganada. A assistida encontrava-se muito debilitada fisicamente, emocionalmente e muito descrente da vida.”

Esse e outros casos são assistidos pela equipe de psicólogas, assistentes sociais, além do suporte pedagógico e jurídico. Segundo a coordenadora, o centro atende a mais de 920 mulheres, entre 18 a 45 anos – podendo receber jovens com 16 anos, desde que tenham uma ligação conjugal, e mulheres acima de 45 anos. Lá, existe uma equipe habilitada a acolher perfis diversificados, relativos à raça, à idade, à classe social, à etnia, ao nível educacional, à cultura e a crenças religiosas. Vale ressaltar que crianças vítimas de violência doméstica não são atendidas nesse centro, mas sim no CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social).

“A maior parte das mulheres são negras, com escolaridade incompleta, evangélicas e nunca trabalharam”

Questionada sobre um perfil geral das assistidas, Maria Luiza da Silva Coelho disse que a maior parte das mulheres são negras, com escolaridade incompleta, evangélicas e nunca trabalharam. Pensando nesse quadro, o CRMQ dispõe de cursos profissionalizantes, que fazem parte de um Pólo de Cultura Digital. São eles: Primeiros Cliques, Educação Financeira, Atendimento Telefônico, Postura no Trabalho, Atendimento ao Cliente.

A violência doméstica não diz respeito apenas à agressão física. De acordo com a lei, casos de violência psicológica (qualquer dano à autoestima e ao emocional ou qualquer tentativa de controle, mediante a ameaças), moral (xingamentos, calúnias), sexual e patrimonial (retenção ou destruição de bens materiais, como móveis e eletrodomésticos, ou destruição de documentos pessoais) também são punidos. Para que a lei seja cumprida, é preciso se dirigir a uma DEAM e prestar uma queixa. Em Feira, existem duas unidades, uma localizada na Avenida Adenil Falcão; a outra, no bairro Sobradinho, fazendo parte do Complexo de Delegacias.

O Centro de Referência é um local ao qual as feirenses podem recorrer, caso estejam sendo vítimas das agressões previstas na Lei Maria da Penha. Sabe o caso da assistida de cadeira de rodas? Com a ajuda do CRMQ, ela recuperou-se, conquistou uma casa própria com o programa Minha Casa, Minha Vida e hoje já se encontra em um novo relacionamento. É possível mudar de vida. Vale lembrar que não é necessário prestar queixa na DEAM para ter acesso ao CRMQ!

O que fazer…

Como o machismo faz parte de nossa cultura brasileira e feirense – bastando lembrar de frases emblemáticas que provavelmente já ouvimos em vários cantos da cidade, como “Seja homem”, “Eu sou o homem da casa e sou eu quem mando”, a prevenção à violência é um passo importante para erradicá-la.

Nesse sentido, além do papel da mídia, da promoção de eventos e palestras, como a Conferência Nacional de Política para as Mulheres (aconteceu em setembro deste ano, em Feira), a educação familiar tem um peso importante: empoderem as suas filhas! Não há pesquisa científica que confirme a seguinte afirmação, mas desafio os leitores a certificarem com os seus próprios olhos: Já notaram como as mulheres de Feira, de um modo geral, têm um aspecto de baixa autoestima? Está mais do que na hora de explorarmos todo o potencial que cortamos tão cedo de nossas jovens, auxiliando-as na construção de uma autoconfiança para delegar as suas próprias vidas!

Além disso, eduquem os seus filhos a não enxergarem as suas relações com mulheres de modo vertical, hierárquico, em que eles seriam os “chefes da família”. Quanto aos adultos, uma boa notícia é a criação, em Feira, de um centro psicossocial de atendimento ao agressor que, segundo a coordenadora entrevistada, está sendo implementado. A ideia principal é de reeducá-lo, a fim de tentar evitar a repetição do padrão violento com outras mulheres.

Como ficou bastante claro, não são monstros do armário que cometem esses crimes: são pais, irmãos, maridos, tios, padrastos. Em suma, pessoas próximas. Até a ficção contemporânea está abandonando, cada vez mais, essa visão maniqueísta sobre o bem e o mal. Se fôssemos apontar um monstro, no máximo, seria o próprio machismo, mesmo ele não sendo de sete cabeças.


 

Centro de Referência Maria Quitéria (CRMQ)

Endereço: Rua Paris, 97 – Santa Mônica. Telefone: (75) 3616-3433.

Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM)

Endereço 1: Rua Adenil Falcão, 1252 – Brasília. Telefone:(75) 3602-9191.

Endereço 2: Rua Landulfo Alves, s/n – Sobradinho. Telefone: (75) 3602-3545.