“Iyá”, na Língua Yorubá, significa “mãe”, e “Orixás” são as divindades do candomblé, religião de origem africana trazida ao Brasil pelos negros escravizados. As Ialorixás, ou mães de santo, são as responsáveis por dirigir terreiros de candomblé, onde ocorrem os cultos aos Orixás.
Feira de Santana, situada a poucos quilômetros de Salvador e do Recôncavo Baiano, locais que receberam significativa população escrava no período colonial, possui influências marcantes da cultura negra, do candomblé e dos terreiros, que hoje existem em grande quantidade na cidade.
Para iniciarmos a reflexão sobre essa influência, a equipe do Feirenses fez um levantamento preliminar sobre a vida de duas ialorixás que marcaram a história de Feira de Santana, Mãe Socorro e Mãe Helena do Bode, ambas já falecidas, mas vivas na memória de muitas pessoas.
Mãe Socorro
Maria do Socorro Romão, a Mãe Socorro, mantinha um terreiro no bairro Rua Nova, e era devota de Senhora Santana (Nanã Buruku, na cosmologia afro-brasileira). Mãe Socorro por muito tempo foi líder das baianas que participavam do cortejo da Festa de Santana – desde 1942 (com apenas 3 anos de idade) frequentava a Festa.
Segundo a tese de doutorado do professor Josivaldo Pires de Oliveira (UFBA), a primeira participação de Mãe Socorro na Festa de Santana “se daria por conta de uma promessa feita à Nossa Senhora Santana. Depois, acometida por uma determinada enfermidade e desenganada pelo médico, teve que apelar para a santa. A cura ocorreu depois de tomar ‘três goles de água contida numa jarra do andor de Nossa Senhora, durante a celebração da procissão’. A partir de então, mãe Socorro não parou de frequentar a festa. Como membro da comunidade de terreiro em Feira de Santana, era no cortejo das ‘baianas’ que prestava suas homenagens e louvor à Senhora Santana”.
Há relatos históricos de uma disputa entre Mãe Socorro e o pai de santo Zeca de Iemanjá, nos anos 80, pela liderança no cortejo das baianas – que Mãe Socorro venceu alegando sua antiguidade, como mostra uma matéria da extinta revista Panorama da Bahia (1984): “‘Eu comando há 30 anos e não saio daqui’. O fato é que no momento de saída das ‘baianas’, Socorro colocou seus filhos-de-santo todos na frente do cortejo e não adiantou o pedido de um funcionário da Secretaria, pois ela alegava sua condição de baiana mais tradicional da festa”.
Ao perceber resistência da organização da Festa de Santana à participação das baianas, em virtude da exibição de símbolos sagrados e de sua indumentária ligada ao candomblé, Mãe Socorro resistia: “Eu não sei porque existe tanta implicação com as baianas. A gente desfila em ordem, em silêncio e vamos lá com muita fé, com muita devoção” (Jornal Feira Hoje/1983).
Mãe Socorro não era apenas líder religiosa, como se vê, era também militante cultural, como mostra a postura combativa na Festa de Santana. Outra destacável atuação da Ialorixá se deu na fundação, em 1960, da Escola de Samba Escravos do Oriente, a mais antiga Escola de Samba de Feira de Santana – ainda existente.
O jornalista e pesquisador Adilson Simas narra uma ocasião que confirma o perfil crítico de Mãe Socorro:
“Presidente da Escola de Samba Escravos do Oriente, Maria Socorro Romão, a Mãe Socorro, não aceitou o terceiro lugar no desfile da micareta de 1976 e anunciou para a imprensa que iria devolver a taça.
Ao fazer duras críticas ao secretário de Turismo Itaracy Pedra Branca e à comissão julgadora, Mãe Socorro explicou que sua escola entrou e desfilou na avenida com mais de 200 membros, enquanto a Unidos de Padre Ovídio, proclamada campeã, apresentou número bem menor e usou, alugadas, as fantasias de destaque da Diplomatas de Amaralina, de Salvador. E arrematou com uma denúncia:
– Ainda colocaram na presidência do júri o senhor Archimedes Silva, presidente da escola que alugou as fantasias…””
Mãe Socorro gozava de muito prestígio na cidade, como aponta o trabalho de Flávia Renata Barreto (UEFS): “mãe Socorro só andava do lado do prefeito, onde tinha um prefeito ela tava lá junto, foi Colbert Martins, pai, foi Zé Falcão, […] Chico Pinto, ela carregava a Micareta nas costas”.
Na foto abaixo, Mãe Socorro (agachada) posa para a foto ao lado de figuras da elite feirense, entre eles (de braços cruzados) o advogado Hugo Navarro, e o candidato a prefeito à época (também agachado) Alberto Oliveira:
Helena do Bode
Segundo o cordel “Vida e Morte de Helena do Bode” (1980), de Franklin Machado, Helena do Bode nasceu em Salvador, e teve formação no Candomblé com o Babalorixá Luis da Muriçoca, por volta dos 13 anos de idade. Era assim chamada por causa da companhia constante do bode de nome Balu. Segundo Franklin, ela “Arranjou o bode novo/Que era de mãe enjeitado/Acostumo-o a dormir/Na sua cama deitado/Comia lá na cozinha/E era muito mimado”.
Helena do Bode, que tinha um terreiro na Rua Nova (assim como Mãe Socorro) é considerada um dos mais importantes personalidades populares de Feira de Santana. Tanto que no início dos anos 2000 o espetáculo “O Arco da Velha” homenageou Mãe Helena, que virou o nome de um personagem, criado por Vado Fernandes. Ele explica a referência a Helena do Bode: “Já Helena do Bode, uma mãe de santo, tinha como fiel escudeiro um bode adestrado. O animal a acompanhava nas compras, cobranças, entregas de correspondências e nos botecos da cidade, onde ambos saboreavam a tradicional caninha. ‘O bicho era tão temido que muitos acreditavam ser o próprio Cão'”.
Adilson Simas nos brinda com a abertura da entrevista de Helena do Bode na edição especial de A Tarde de 1978, alusiva ao Dia da Emancipação Política de Feira de Santana:
“[…] Helena do Bode, como é conhecida popularmente esta imensa preta de gorduras que se derramam pelo pescoço, num gigantesco colo e não menos enormes ancas, é simplesmente Maria Helena de Andrade, 44 anos, 105 quilos (mas deve ter muito mais porque há muito não enfrenta a realidade diante de uma balança), é baiana nascida e criada no Rio Vermelho, precisamente na Rua da Lama, na Vasco da Gama, em Salvador.
Seus olhos negros graúdos, parecem saltar-lhe das órbitas, mas um olhar triste vago, dão a esta folclórica e popular figura um tom enigmático. Dela se diz muitas histórias.
Por que Helena do Bode? Segundo contam, quando Helena se estabeleceu em Feira criava um bode preto que era o símbolo do êxito de suas rezas, seus trabalhos. Mas dizia-se que o bode só a ajudava para o mal. Se alguém queria se livrar de alguém que andava atrapalhando a sua vida, Helena fazia um trabalho qualquer e pronto. Mas com o tempo o bode foi ficando velho e acabou morrendo. Com ele foi-se esvaindo a fama da temida Helena do Bode. Ficou apenas o nome […]”.
Emanuel Freitas, administrador do site Viva Feira, conta uma versão para a morte de Mãe Helena, que teria ocorrido (segundo Franklin Maxado, em 1979):
“Contam que Helena faleceu em uma mesa de cirurgia na tentativa de fazer uma correção nas mamas, embora fosse volumosa e apesar de não ter muita altura e pesasse mais de cem quilos, sentiu necessidade de reduzir os seios, naturalmente por problemas de saúde. Muitos políticos da região que viviam buscando apoio em seus serviços e confiantes em suas previsões ficaram órfãos, e naturalmente decepcionados por Helena ter tido uma morte tão humana, quando sua imagem nos fazia pensar em uma mulher poderosa, que para alguns tinha poder de vida e morte, mas a existência é assim mesmo, tem sempre uma lição quando menos se espera.”