Morei parte da minha infância no Conjunto João Paulo II, quando a Avenida Fraga Maia ainda era lama e barro, e quando a atual praça do Conjunto era habitada por sapos e rãs, donas do pequeno lago que existia por lá nas épocas de chuva.

Muito tempo depois, retornei ao João Paulo para conferir a indicação de amigos sobre um tal Cidade da Cultura, bar/restaurante aconchegante, com boa música e ambiente primorosamente decorado com referências nordestinas. Já faz alguns anos que frequento o Cidade, tendo a oportunidade de conhecer uma figura de referência no meio artístico feirense, o músico, compositor e produtor cultural Asa Filho.

Além de administrar o Cidade da Cultura junto com sua esposa, Jacimar, Asa Filho é o responsável pela promoção do Reisado de São Vicente, uma das festas de referência cultural em Feira de Santana, realizada todo ano no distrito de Tiquaruçú.

Asa completa 61 anos de idade em julho de 2015 e, como poucos, vivenciou e vivencia o cenário artístico-cultural da Feira. Para conhecer essa figura, e entrar em contato com suas experiências entre Tiquaruçú e Feira, o entrevistamos numa tarde nublada no Cidade da Cultura:

Feirenses: Quem é Asa Filho?

Asa Filho: Na origem da palavra Asa Filho é Augusto de Souza Araújo Filho, Asa Filho. Esse pseudônimo quem me deu foi um parceiro, poeta, compositor, chamado Evaristo Nazareth. Na época eu estava procurando um nome para mim, pensando em “Guto”, “Augusto”,”Augustinho de Ziza”, “Guto Elvis”, coisa meio americanizada da época, aí ele disse: “Não, rapaz, como é seu nome?”. Aí ele escreveu. Quando escreveu achou o pseudônimo: “Tá aqui… Asa Filho, Augusto de Souza Araújo Filho”. O Asa Filho é isso aí.

Feirenses: Você nasceu em Tiquaruçú…

Asa Filho: Sim, Tiquaruçú, Distrito de Feira de Santana.

Feirenses: Você tem lembrança da sua época de infância?

Asa Filho: Eu tive uma boa infância. Tanto que o ponto de memória aqui no Cidade da Cultura é minha infância e os objetos que me lembram todo dia dela: o fecho da lenha, pegar água na fonte pra beber, pra tomar banho, pra cozinhar, ir buscar lenha no mato pra fazer o fogo e minha mãe cozinhar os alimentos.

Para ir à escola a gente andava muito para alcançar a escola. Minha mãe era professora, me puxava na orelha. As professoras tinham a gente como filho e não como meros alunos da escola pública, sabiam o nome de todos. Sabiam como chegar em casa e fuxicar da gente. Tomar banho de tanque, cacimba, correr atrás de passarinho, ver o vaqueiro todo encourado aboiando, tocando gado. É uma infância que me formou homem!

Feirenses: Você falou do aboio dos vaqueiros. Que outros sons da sua infância são significativos?

Asa Filho: Como não tinha povoamento naquela época, a gente ouvia alguém chamar outro de manhã cedo à distância de quase um quilômetro: “Ô Juliano, ô Juliano!”. Aquilo de manhã cedo, você dormindo na cama e ouvindo. “O que é, Afonso!?”. Isso entrava no meu ouvido como uma música. Meu Deus do céu, que coisa linda! “Traz aí o cesto! Vem buscar tua berduega!”.

Tudo era com um valor oral, porque não tinha esse negócio de estar aqui e estar telefonando pra você. Era tudo no gogó. Acho que isso me ajudou a cantar, me ajudou a fazer poesia.

Feirenses: Quando você se deu conta de que queria se dedicar à música, de que tinha vocação para a música?

Asa Filho: A gente não descobre, quem descobre são as pessoas. A gente pode até ter o talento contido, mas quando vem alguém dizer “bota esse menino pra fazer isso” é que a gente sabe. Pra mim tudo começou na escola. Meu pai fazia festas, organizava as coisas. Minha mãe arrumava e ficava varrendo a igreja e cantando a ladainha, e aí a gente cantava.

Eu tenho um amigo de infância chamado Beto Cego, que não é cego de verdade, mas é um cego que enxerga um pouco com a mente, e ele cantava pra satisfazer a solidão dele. Eu também tinha um primo que era cego e cantava. Aquilo vinha em meu ouvido e me inspirava.

Quando eu cantava na igreja chegou uma professora, formada em música, e me viu cantando e disse: “vije como ele canta, dona Ziza, vou levar ele para o coral da igreja”. Eu queria tocar um instrumento, mas acabei indo aprender coral. Ela era regente e me botou pra cantar no contralto, voz de mulher, não foi tenor e nem soprano, porque eu tinha uma voz um pouco rouca e fazia umas segundas. Eu fazia muito dueto com minha irmã e minha tia. “Foi na cruz, foi na cruz/que um dia eu vi/meu pecado castigado por Jesus”.

Eu botava a segunda voz e quando entrava a igreja  dizia “Ave, esse menino canta bem”. Aí pronto. Aí eu me dei conta, realmente.

E essa professora, chamada Clesina, foi minha primeira morada em Feira, no êxodo, pra alcançar um estudo melhor.

Asa Filho: asasa. Foto: Ena Lélis

Asa Filho cantando Bob Dylan. Foto: Ena Lélis

Feirenses: Você disse que seu pai organizava festas. Seu trabalho como produtor cultural tem influência de seu pai?

Asa Filho: Ah, tem! Toda uma influência de meu pai. Eu tenho esse camarim (no Cidade da Cultura) e a gente oferece uma comida para o músico, diferente da realidade de antigamente, porque meu pai garantia que os artistas além de dormirem lá em casa, também comiam e bebiam, pra tocar à noite. Vinham de longe andando. E meu pai fazia a festa, a quermesse, onde ele tocava também. Os instrumentos ficavam em cima da cama, eu ia lá, pegava, ficava olhando. Instrumento de sopro! Aí via lá o violão, a dedeira… Tinha um senhor que era muito virtuoso, muito desenvolto no tocar etc.

Feirenses: E quando foi que você percebeu que devia militar na área de cultura, e não só ser um artista?

Asa Filho: Olha… Eu fiquei sempre à sombra. Eu nunca quis ser artista. Eu queria ajudar os artistas. Toda vida meu lugar não era o palco, de ser eu o primeiro. Se eu via um músico cantar e ele não tinha uma certa penetração na coisa, eu queria fazer dele aquele artista. E fiquei à sombra vendo Beto Pitombo, Tonho Dionorina, Cescé. Mas eu via esses caras com falta de profissionalismo, no sentido do que era necessário para que eles se tornassem artistas. Faltava um negócio, faltava outro, e comecei a ajudar e tal.

“Mas o meu inglês não é de falar, é apenas de pronunciar. Eu não sei que diabo é ‘No Woman No Cry'”

Depois, eu vendo o meu talento tocando violão e as pessoas diziam que, podia estar quem fosse, chegou Asa Filho, chegou alegria, chegou brincadeira. E aí comecei a cantar em inglês, que era uma matéria obrigatória na época, o inglês e o francês. Mas o meu inglês não é de falar, é apenas de pronunciar. Eu não sei que diabo é “No Woman No Cry” (canção de Bob Marley), mas eu cantava e pra terminar ainda inventava o meu inglês. Quem ia cantar Bob Dylan naquela época? Quando eu cantava Bob Dylan vinha a família Nascimento, Cescé e todo mundo: “mas esse bicho é doido!”.

Eu ficava à sombra, mas me chamavam pra dar canja. Quando eu dava canja, o pessoal gostava e aí pensei: agora já posso. Do barzinho surgia: “Você toca? Você pode fazer meu aniversário, tocar em minha casa, na beira de minha piscina?”. Aí montei meu kit sobrevivência: uma caixa de som amplificada, um microfone, um pedestal, um violão e um timbau. Chegava no aniversário eu tocava, ganhando já um dinheirinho. Quando ganhava esse dinheirinho vinha outro contrato. E de cinquenta em cinquenta eu fui formando esse nome, Asa Filho.

Aí montei uma banda, Asa Filho e Carlinhos na guitarra, que me acompanhou muito aqui em Feira de Santana. Um dos melhores guitarristas que já vi em minha vida. E nessa pegada do internacional ele vinha: Scorpions, Dire Straits, Creedence Clearwater, até chegar em Zé Ramalho.

Feirenses: É comum que músicos não consigam viver exclusivamente da música. Que outros tipos de ofício Asa Filho já exerceu?

Asa Filho: Quando cheguei em Feira de Santana, eu estudei. Depois fui pra Salvador também para estudar, tirei meu ginásio lá. Quando não pude mais ficar em Salvador, porque ficava em casa de parentes, aí voltei e fiz o científico. Naquela época o ginásio e o científico eram muito bons, era praticamente uma universidade. Quando eu estava pensando em voltar pra Salvador, pra fazer vestibular pra jornalismo, a UEFS chegou aqui, e meu pai disse: “não… tem universidade aqui, então não adianta estar gastando dinheiro com você e tal”.

No primeiro vestibular de Feira, da UEFS, eu passei, em Estudos Sociais. Por causa da minha pegada polêmica, socialismo, lutar, bandeira, ditadura não sei o quê… Aí passei em Estudos Sociais. Depois disso fui pro Rio de Janeiro. Deixei o curso aqui e fui pro Rio de Janeiro. Meu pai era funcionário do DNER, que hoje é DNIT, como ele adoeceu e tinha condição de fazer um tratamento melhor no Rio, foi pra lá e ficou, e faleceu no Rio.

Estando no Rio, não deixei de futucar pra ver se eu ia pra Globo, pra Silvio Santos, pra não sei o quê… Mas eu era muito novo, com uns 17 anos. Quando eu e minha mãe ficamos órfãos, voltamos pra Feira, e foi aí a primeira vez que precisei trabalhar. O que eu fui ser? Meu pai tinha deixado um fusquinha, aí um amigo meu da loja Araújo, que vendia instrumentos musicais, falou: “bota esse carro na praça, rapaz. Isso é emprego imediato. Táxi!”.

Como? “Arruma uma placa com o prefeito”. Minha mãe na época era chefe do cartório, professora, tinha o maior respeito na cidade. Aí batemos na porta de Colbert Martins: “Doutor Colbert, eu quero uma vaga de táxi!”. Ele disse: “Você não quer um emprego pra ele não, Ziza? Ele já tem idade”. Aí me deram o emprego, tipo um assistente administrativo, em São Vicente. Mas aí eu coloquei outra pessoa em meu lugar e botei o carro na praça. Fui ser taxista!

A maior escola da vida é um táxi! Virei psicólogo, virei enfermeiro, virei parteiro, virei tudo.

Depois disso, veio um concurso, na época do Prefeito Zé Falcão. “Não adianta pedir, não adianta dar mão, meu voto é Zé Falcão” (cantando o jingle da campanha). Minha mãe apoiou Zé Falcão, e aí ele perguntou a ela: “Ziza, cadê seu filho?”. Ela: “Tá estudando, mas precisa trabalhar”. Aí abriram vagas no período político pra ser alguma coisa no estado, e eu fiz um teste e fui ser agente administrativo no estado. Eu pensando que era uma grande coisa! Aí fui trabalhar no setor de saúde do estado.

Cheguei lá todo cantor. Quando vi o emprego, eu disse “meu Deus, do céu. Não tenho nada a ver com isso aqui”. Mas virei funcionário público, mas sempre perseguido pela música.

Antes desse emprego fui também viajante, caixeiro viajante, representante comercial de uma empresa. Conheci o Nordeste todo. Toquei em tudo quanto foi brega e bodega. Toquei por aí, conheci artistas: Alceu Valença, Zé Ramalho. Doido pra ter uma oportunidade pra viajar com eles.

Mas o emprego e o trabalho não deixaram, e também depois disso me casei. Dona Jacimar desde pequena me perseguindo. Filha de lá também (Tiquaruçú), nascida no mesmo lugar, e essa Jacimar, essa Jacimar. Por mais namoradas que eu tive, era a Jacimar! A prometida, a encomendada. Chegou eu pela chaminé e entrei na casa de seu João Coutinho, coronel.

Como é que entra? Pobre, emprego simples. Tá bom… Mas casamos. E aí, pronto. Funcionário público, me aposentei agora, sem nunca terminar os estudos. Terminei agora, que vim concluir um curso superior de marketing, pra me ajudar a administrar isso aqui (o Cidade da Cultura).

Feirenses: E o Cidade da Cultura, como começou?

Asa Filho: Esse espaço era uma casa de material de construção, um comércio que eu botei. Mas eu sempre na rua lidando com música, e dona Jacimar aqui. Nego dando calote, eu digo… Esse negócio não vai pra frente. Aí acabamos e alugamos. Até que Cescé, que também batalhou muito com bar em Feira, bares bacanas mas que não tinham a pegada comercial, fechavam por dificuldade de pagar aluguel, contas e tudo mais. Quando estávamos aqui fazendo um churrasco e tocando violão, com Freire da Coca-Cola, falávamos que não tínhamos onde tocar. Isso com a tecnologia do Feiraguai, o teclado importado tomando conta, não tinha mais o voz e violão nos barzinhos.

“Cescé abriu mão de tudo. Ele é um artista nato, é o mais respeitado e ‘acabou’.”

Até que Cescé olhou pro canto e falou assim: “Sabe onde é que a gente vai tocar? É aqui!”. Eu perguntei se ele queria colocar um bar aqui. Ele disse: “Não! Você mesmo bota!”. Aí alguém me disse: “Asa, tem sentido. Vocês têm condição. Cescé, você”.

Cescé é outro, que deixou os estudos, quase foi engenheiro civil, estudou edificações. Passou no concurso da PRF, largou por causa da música. Cescé abriu mão de tudo. Ele é um artista nato, é o mais respeitado e ‘acabou’.

Então, para abrir o Cidade da Cultura eu fiz o curso (de Marketing) e aprendi o que é marketing, o que é comércio, o que é venda. Aí o povo foi tomando gosto por causa do tira-gosto de dona Jaci. Tinha uma tal de pititinga, meu amigo… Aí dona Jaci foi vendo o lado comercial.

O pessoal da Coca-Cola teve aqui e Freire disse que ia montar o bar pra mim, a parte logística. Freezer, cadeira, mesa. Aí dona Jaci caiu pra dentro. Aí a coisa foi se profissionalizando. A tal ponto que eu perdi a metade dos meus amigos. Ficaram de mal porque eu coloquei os mandamentos. “Não pode beijar, não pode isso, não pode aquilo”. Eu vi isso no Marketing, que era importante criar uma forma, um modelo para que os amigos respeitassem o negócio. Aí começamos a pegar um cliente que não tínhamos, porque fui estabelecendo coisas que são necessárias. Tirei CNPJ, imposto e tudo mais. Nisso, já temos 11 anos nessa labuta.

Mas isso não pra meramente ganhar dinheiro, mas para salvar os artistas de Feira, que não tinham onde tocar. Aí começou a vir Josa, seu Didi, Cescé… Cescé até perdeu o posto. Lá fora era uma briga, a ponto da gente sentar separado quando chegava no mesmo lugar. Ele dizia: “Lá vem ele, o rico, milionário, o metido a empresário”.

Como eu já conhecia Cescé, o coração dele, depois Cescé vinha e dizia: “rapaz, tá um comentário de você na cidade que eu já passei a lhe defender. Que seu bar não pode isso, não pode aquilo. Mas todo mundo que vem diz que gosta, fala mal mas é a melhor casa”.

Eu tive boa criação, não é um bar que ia me mudar. Hoje me considero rico, não precisei ir pro Rio, nem pra Globo, e existo desde que nasci. Não é um Wesley Safadão que tem uma carreira meteórica. Mas a gente existe. Cescé existe. Mesmo sem dinheiro, sem essa fama a gente faz parte de uma coisa histórica, um alicerce.

Feirenses: Você acha que o músico em Feira de Santana precisa ter um olhar melhor de Marketing, de profissionalismo?

Asa Filho: Com certeza. Roupa, sapato, bigode, cara. Tudo! O artista de Feira precisa se produzir pra ele ser valorizado. A gente vai tocar numa banda e não se produz porque a gente não tem o lugar que Wesley Safadão tem? É ir só pra ganhar o cachê? Peraí, meu amigo! Como é que a gente vai gravar um DVD? Agora existe também uma situação que eu vou lá e volto. O músico acaba tocando pra todo mundo. Ele não é um músico que faz parte de um grupo, como Zé Ramalho, que tem uma banda há trinta anos. Há vinte anos Alceu Valença toca com o mesmo guitarrista. Aqui se pega um guitarrista hoje, outro amanhã. “Tocou com quem ontem, bicho? Toquei com Asa Filho, exigente, chato”. “Cescé? Deus me livre tocar com aquele homem”. Porque a gente quer ver aquele som redondo, aquela coisa bonita. E os caras não se produzem. Agora, quando viaja, vão lá pra fora, voltam: “Porra, cara, toquei lá em Brasília, num palco assim e tal”. Vamos nos profissionalizar! Nos colocar no nosso esqueleto!

Feirenses: Não falta em Feira mais centros de referência cultural de formação de músicos, que possam orientar sobre comportamentos e criar uma espécie de escola?

Asa Filho: Falta, falta. As pessoas estão formando uma academia de música em Feira (na UEFS), de nível superior, já com uma didática, um conceito de faculdade, e que vai formar músicos. Mas não é esse tipo de músico que a gente está falando. É músico de concerto, que vai colocar um blazer e tal. A referência de Feira de Santana como celeiro musical era muito grande. Mas o comércio acabou com a cidade. Em outros lugares ele eleva a cidade, mas aqui acabou com Feira de Santana.

Aqui se vende de tudo, e se pechincha de tudo. Se torna empresário do dia para a noite. Agora, cultura, pra dar uma continuidade cultural a seus filhos e tal é terrível. E a gente com tudo aqui. Nós temos a (Filarmônica) 25 de março aqui, tínhamos a Euterpe Feirense, tínhamos o Feira Tênis Clube, e tínhamos, e tínhamos e tínhamos…

Ficamos nesse tínhamos e Irará ganha pra gente, Santo Amaro ganha, porque lá existe o respeito aos monstros sagrados gerados por essas cidades… Tom Zé, Caetano, Maria Bethânia, Jorge Portugal e outros. E Feira? Timbaúba, Cescé, Carlos Pitta, que ele mesmo diz que “eu sou de lá, mas não sou de lá”, Luiz Caldas, que nunca colocou o nome de Feira na frente dele. Onde nós vamos parar? Eu quero que aqui também tenha um Psirico. Ter uma Ivete Sangalo aqui também. A gente quer um Roberto Mendes aqui. Até pra que venha barrando certas coisas de fora.

Feirenses: É o público que não se interessa pela música pensada ou é a música pensada que não é exibida suficientemente para o público? 

Asa Filho: Existe uma aceleração no mundo. Na educação, na segurança, na faculdade. Quanto mais se faz doutorado mais o ensino cai nas faculdades. Todo mundo quer ter e não quer ser. Mas como hoje está fácil se enganar e tem uma coisa midiática em cima empurrando, há um consumo exacerbado do que não presta. A mídia lhe empurra. O artista hoje não passa de um ano. Tudo é descartável. Você posta um texto na internet de três linhas e as pessoas não leem, imagine você fazer uma música como Nordeste Independente, de Ivanildo Vila Nova. Uma música como a de Chico Buarque, que tem uma página, que é Geni, que é uma Ópera. O pessoal vai aprender como? Não toca no rádio, não fala o nome. Quem ganha é o “xixixixaxaxa”, o “lelelê”. Isso dificulta. É a indústria!

Mas ainda há espaço para o bom compositor, a boa música, em pequena escala, mas tem.

Asa Filho

Asa Filho no Cidade da Cultura. Foto: Ena Lélis

Feirenses: Faltam empreendedores de cultura em Feira de Santana?

Asa Filho: Com certeza. As pessoas precisam entender que cultura é também mercado. É preciso entender isso. É por não assumir isso que muitas vezes você vai tocar num lugar e agregar o valor de um couvert do artista é pecado, porque acham que o artista faz porque ele gosta e pronto. Aí é complicado!

Em cima disso, é bom atentar que os editais de cultura são públicos. Asa Filho não tem culpa porque ganhou um edital. Asa Filho organizou pra ser merecedor daquele prêmio. Fica um bocado de chocalho batendo, sem conhecimento. Depois que Gilberto Gil entrou no Ministério da Cultura a gente deixou de bater na porta de político. Saneou a cultura pra todo mundo.

Os editais estão aí, os prêmios estão aí. Eu não tenho culpa se meu senhor está no tablet o dia todo e não vai para o computador trabalhar a sua história. É um mercado que favorece muito mais a nós, que temos história. Um Timbaúba, um Cescé pode concorrer a um prêmio de música, e já entra sendo forte candidato. Eu não tenho medo de edital nenhum que saia dentro da minha temática.

Agora mesmo, ganhamos um prêmio da Fundação Palmares, do Governo Federal. Um documentário em DVD que vai ser lançado em Feira de Santana por volta de agosto. Era pra fazer uma pequena gravação do show do Reisado, e aí os meninos da UFRB, de Cachoeira, quando viram o material que eu tinha toparam fazer o documentário, mesmo com pouco dinheiro. Fizemos, passou de 40 minutos, passou de 60 minutos e ficou em uma hora e vinte minutos. A princípio, vamos lançar no Parque do Saber, com o apoio da Prefeitura, e isso é um legado pra história de Feira. Mas é um edital público. Eu fui o segundo colocado no Brasil. A Fundação Palmares, quando terminamos e eles viram o DVD, ligaram de lá dizendo: “Seu Augusto, quando tiver o lançamento nos avise, pra que a gente mande um representante da Palmares em Feira de Santana”.

Então hoje é tudo aberto, não depende nem de Dilma. Tenho dito isso a muita gente. Por exemplo: Zé das Congas hoje é ponto de cultura. Falei com ele: “Tu é forte, Zé”. Hoje é ponto de cultura. E vale a pena, porque no edital tem o valor destinado ao artista, e ele pode, com aquele dinheiro, se produzir.

Lançaram o edital Produtos Culturais Negros do Brasil. Tornei a colocar lá e ganhei de novo. Com esse vou fazer a grande bata de feijão da história. Deus tá mandando bom tempo, então vou fazer, com forró, com comida. É por isso que se ouve por aí as coisas, e eu digo: “vai trabalhar, vai ler, vai usar a internet pra outra coisa”. A gente não tem mais como ser artista pra ir pra Globo.

Feirenses: Queria que você falasse um pouco sobre o Reisado de São Vicente (Tiquaruçú).

Asa Filho: O Reisado foi outra visão minha. O batuque, o samba-de-roda, o que esse povo faz é cultura. Mas é uma cultura que envolve roupa, o modo de andar, os dentes sem escovar. Mas chegavam e diziam: “Você é de onde, seu Zezinho?”, “eu sou de lá, da roça”. “Toca o pandeiro aí”… Ele toca. Mas só isso vai botar esse povo pra frente? Vai tornar esse povo artista? Aí a Festa de Reis só dava pagode e essas bandas coisa. E cadê o Reisado? Cadê o terno de Reis? Eu disse, “não, tem que voltar ao tempo do meu pai”.

Aí eu fundei o Reisado justamente por isso, pra salvar a Festa de Reis, simbolicamente. Aí quando vê o símbolo, a televisão “vup”, em cima. E aí a gente cresceu por isso. Passamos a ser ponto de cultura. Veio a roupa, os instrumentos. Trouxemos o batuque pra tocar em cima do palco, igual a uma banda. Aí houve uma valorização do público. Hoje é uma ONG. Porém, com esse documentário que produzi, já vou quietar com o Reisado. Por quê? Pra não brigar com o poder público eu vou entregar a ele. É como a filarmônica: “se morrer agora é culpa sua”.

Porque eu não tenho condições de sustentar. São 30 pessoas que, quando saem, eles precisam de tudo. E eu tenho minha vida. Eu quero mais focar no meu trabalho no Cidade da Cultura e deixar por conta da Prefeitura. Até a casa lá onde a gente é sediado é da Prefeitura, num convênio.

Eu já fiz um dossiê do Reisado, com 72 páginas, e entreguei ao Prefeito José Ronaldo. Eu estou precisando viver um pouco mais. O Reisado já está pronto. Arranjei um menino de lá que vai tomar conta. E não vai acabar. Toinho Campos já está tomando conta de tudo, é ele o coordenador, e eu não preciso ir pra São Vicente. São 25 quilômetros. Se um der dor de barriga: “chama Asa Filho”. E não tem uma política da Prefeitura de apoio moral, pra reformar casa, dar um cachê ao pessoal, valorizar!

“Deveria o Poder Público de Feira de Santana, com iniciativa própria, nos respeitar”

Feirenses: No cenário cultural de Feira de Santana, qual o papel do artista, qual o papel do empreendedor e qual o papel do Estado?

Asa Filho: Nós não podemos desconhecer que o artista, antes do empreendedorismo, ele deve ganhar dinheiro com o Poder Público mesmo. Deve ganhar da Prefeitura mesmo. Negócio de dizer que não vai pagar porque a Prefeitura não é a casa de mãe chica, tá errado. De onde vem o cachê de Ivete Sangalo? De onde vem o cachê de Seu Maxixe? É o poder público! Deveria o Poder Público de Feira de Santana, com iniciativa própria, nos respeitar. O artista de Feira precisa ser valorizado em números. Dinheiro! Pra ele ter boa roupa, bom instrumento e pagar um bom cachê a seus músicos. É o que resta pra cidade ter como patrimônio! Nós somos um patrimônio imaterial. Sem diferenciação. Eu sou diferente de Paulo Costa, somos duas peças boas, mas somos diferentes. Tem que manter os dois, como mantém Os Clones, que tocam em Feira de Santana em toda ponta de calçamento pra inaugurar. Por que leva gente? A gente também leva gente! Só é aprender a valorizar.

O papel do artista é produzir sua arte. Nós produzimos e mostramos. O papel do poder público é valorizar essa arte, como valoriza a escola, o hospital. E o empreendedor também deve nos valorizar, porque somos um patrimônio. O dinheiro que a gente ganha aqui a gente gasta aqui. Vai comprar sabão, carne, remédio, tudo em Feira de Santana. Agora existem os grandes empresários dos grandes artistas, que pagam à mídia para tocar as músicas desses artistas. Como a gente não tem dinheiro pra pagar, meu CD fica sem rodar, sem ser conhecido.

Feirenses: Pra finalizar, gostaria que dissesse duas referências musicais.

Asa Filho: Eu gostaria de me pronunciar e dizer que eu não tive influência de Luiz Gonzaga. O pessoal tá usando muito Luiz Gonzaga. Eu tive influência foi de Jacinto Silva, Negão dos 8 Baixos, da Banda de Pífano de Caruaru. Luiz Gonzaga foi algo posterior.

O que eu absorvi na minha juventude foi algo mais Woodstock, as bandas internacionais, bandas como Casa das Máquinas, Os Incríveis. Aqui também: Zé Ramalho, Roberto Carlos, na questão da paixão, da dor de cotovelo, sem dúvida, na hora da paquera. Também Bob Dylan, Pink Floyd, com aqueles solos de guitarra e tal.

Eu não falo de Luiz Gonzaga pra que eu não seja modista e deixar Negrão dos 8 Baixos, João do Pífano de fora. Jacinto Limeira de fora disso? Não pode. O cara fala: “fui influenciado por Luiz Gonzaga!”. Mentira! Tá usando o potencial de Luiz Gonzaga pra dizer que tem prestígio e ganhar o cachê.