– Seu Zé, me dê esse livro aí! Sonhei com umas coisas essa noite e quero ver o que foi – dizia Barriga apontando para o Grande Livro dos Sonhos, já desgastado e sujo de tantas consultas feitas diariamente.

Após olhar apertando os olhos (reclamava da necessidade de óculos que não tinha conseguido comprar com o salário do mês), afirmou definitivamente:

– É pavão! Venha marcar, Seu Zé. Cinco reais de pavão hoje! E traga uma cerveja! – e batia no balcão convicto da correta interpretação do sonho que teve.

Quem conviveu ou convive no ambiente de muitas bodegas em Feira de Santana já teve contato com cenas assim, onde o jogo do bicho torna-se objeto de especulações místicas, ambições econômicas, cálculos folclóricos ou simplesmente desculpa para tomar uma cerveja e socializar, nem que seja com Seu Zé e outros donos de botecos na cidade. “Vi Tonho semana passada. Hoje deu a placa do fusca 86 que ele tinha. Aquele que virou em indo pra Cabuçú na Copa de 94. Era pra ter jogado!”, lamenta o apostador do bicho, ávido por combinações que comprovem seu potencial de enriquecimento.

O Livro dos Sonhos

O fato é que, no Brasil, o jogo do bicho pode ser tomado como significativa referência das nossas contradições culturais. A loteria foi criada em 1892 pelo Barão João Batista Viana Drummond, fundador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro. A intenção por trás da ideia era nobre: o barão queria atrair mais gente para o zôo, compensando o corte de verbas do governo, que mantinha o lugar. Para alimentar toda a fauna, Drummond mandou imprimir o desenho de 25 bichos nos ingressos. Pontualmente às 5 da tarde, sorteava um deles. Quem tivesse a figura vencedora ganhava 20 vezes o valor da entrada.

O problema é que, dois anos depois, a quantidade de apostas por visitante do zoológico não ficou limitada a uma figurinha, fazendo com que se caracterizasse como jogo de azar, sendo proibido pela Prefeitura carioca um ano depois. Como sabemos, a proibição não teve sucesso, e o jogo do bicho se expandiu nacionalmente, popularizando os bicheiros, que, em vários casos, se uniram com grupos ligados ao tráfico de drogas e de armas, especulação imobiliária, prostituição, jogos eletrônicos, transporte clandestino e por aí vai.

Em sua tese de doutorado na UFPE, a pesquisadora Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira mostra um interessante relato de um colunista do Jornal Folha do Norte em 1951 (em 1944 a Lei de Contravenções Penais já existia, e proibia os jogos de azar), demonstrando preocupação com a proliferação do jogo do bicho na Festa de Santana:

“É uma vergonha o que está acontecendo nesta cidade. A urbe foi transformada em verdadeiro Monte Carlos. A Praça da Matriz dá a impressão de um cassino ao ar livre. E a lei federal que proíbe o jogo ainda está em vigor![…] O que está causando admiração é ter a comissão da Festa consentido na instalação de barracas para a exploração do jogo. A Igreja condena e combate a tavolagem”.

 

Em outro trabalho acadêmico, do pesquisador Carlos Alberto Alves Lima, mostra-se a crítica do semanário “O Coruja” (1956) sobre a presença do jogo do bicho em Feira:

“O jogo essa calamidade pública, esse câncer social, tem em Feira de Santana um campo profícuo. E enquanto o tempo passa, se alastra, mais livre se torna (…). De nada serve a polícia que não policia por ver desrespeitada a lei, por quem deveria fazê-la ser cumprida. E o jogo continua nas barbearias, nos pontos de ônibus, nos bares e principalmente nas bancas do Mercado Municipal, que se transformam em bancas receptoras, afrontando a prefeitura, por se tratar de um de nossos patrimônios (…)”

Jogo do Bicho em Feira

Num ponto de sua pesquisa, Carlos Alberto exibe a preocupação da Folha do Norte (1959) com os vínculos de poder estabelecidos pelo jogo do bicho:

“O jogo do bicho, cancro social, instituiu na Feira, em monopólio partidário, vive sob escancarada proteção da polícia. Da polícia e da desmoralizada situação política infelizmente dominante nesta desgraçada terra. Andamos certamente a clamar no deserto. Mas ninguém se iluda. A Feira é um município que se arruína e desagrega um município em decadência. Decadência territorial, decadência econômica, decadência política e principalmente decadência moral (…)”.

 

Feira de Santana, brotada do encontro de múltiplos viajantes e comerciantes de todas as partes do Brasil, parece ter especial vocação para os traços da cultura tupiniquim que foram caracterizados por Roberto da Matta, melhor do que ninguém, no clássico “Carnaval, malandros e heróis”.

Ele pontua que “É como se tivéssemos duas bases através das quais pensássemos o nosso sistema. No caso das leis gerais e da repressão, seguimos sempre o código burocrático ou a vertente impessoal e universalizante, igualitária, do sistema. Mas no caso das situações concretas, daquelas que a “vida” nos apresenta, seguimos sempre o código das relações e da moralidade pessoal, tomando a vertente do “jeitinho”, da “malandragem” e da solidariedade como eixo de ação. Na primeira escolha, nossa unidade é o indivíduo; na segunda, a pessoa. A pessoa merece solidariedade e um tratamento diferencial. O indivíduo, ao contrário, é o sujeito da lei, foco abstrato para quem as regras e a repressão foram feitos”.

Nesse sentido, o jogo do bicho é um elemento problematizador dessa disposição cultural do brasileiro e, em especial, do feirense.

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– Porra, Seu Zé! Joguei ontem Pavão e deu hoje. Era pra ter repetido o jogo! Sonho vale três dias! Me dê esse livro aí de novo…