Qualquer pessoa interessada em entender o cenário do samba em Feira de Santana não pode deixar de ouvir e conhecer Orlando dos Santos, o Mestre Orlando, talvez a maior referência viva do samba na cidade. Nascido no início da década de 1940, no bairro Baraúna, Mestre Orlando não é apenas uma testemunha da história do samba em Feira, mas também das relações entre a população da periferia com os setores mais abastados da cidade.
Tocador de cuíca e pandeiro, cantador de samba-enredo, certamente a melhor forma de entender esse baluarte é através da sua música. Mas tentamos auscultar um pouco dos mais de 70 anos de vida e 50 anos de samba nessa entrevista:
Feirenses: Quem é Mestre Orlando?
Mestre Orlando: Mestre Orlando é alguém que vem trabalhando com o samba há mais de 55 anos, e que faz samba com muito amor. Um amor que me leva à insistência para qualificar o samba em Feira de Santana, apesar de nossa cidade não abraçar muito. Mas quando a gente se apaixona, a gente entrega o corpo e a alma. E eu tenho entre 55 e 60 anos que estou dentro desse ritmo de samba, e minha vontade ainda não parou de ver o samba brilhar aqui em nossa cidade.
No Rio de Janeiro, nunca parou. Eu tenho certeza que o Rio de Janeiro, São Paulo, que tem um samba com muitos anos, aproveitaram muita coisa da nossa Bahia. E a minha vontade é que o samba cresça mais, produza, porque a gente tem agora uma nova fase, uma rapaziada com muito amor, muito carinho, muita dedicação. E eu me sinto na obrigação de acompanhar esse pessoal, e tenho certeza que vai valer a pena.
Feirenses: Você nasceu em Feira?
Mestre Orlando: Nasci. Aqui no Bairro da Baraúna. Meus pais vieram de Ipirá em busca de trabalho, com essa situação difícil, perversa para a nossa classe humilde, algo que vem de longos anos. Eles trabalhavam em fazendas naquela região e perderam o emprego. E na chegada aqui eu nasci, em 24 de dezembro de 1942, véspera de Natal.
No meu início, aqui na Baraúna, na rua principal, existiam quatro postes, e as luzes não acendiam todos os dias. Não existia saneamento. Nós vivíamos ali, entre boi e cavalo, que eram a novidade, quando passavam os tropeiros com as boiadas, que vinham de longe e passavam pela nossa Baraúna. Nós não tínhamos nada naquela época.
“Pegávamos aquelas latinhas, íamos para o matadouro, pegávamos bexiga de boi, abríamos ela, colocavámos como uma pele na latinha, amarrávamos um estique e colocávamos no sol. Era nosso instrumento de percussão de primeira qualidade.”
Na época da minha infância, os adultos tinham um cordão (uma espécie de bloco de Micareta) aqui na Baraúna, que meus pais participavam. Eu era garotão, mas gostava, quando tinha oportunidade, quando nossos coroa levavam, ia assistir aquele trabalho. Uma cultura que existia na força de vontade. Depois que acabou o cordão, surgiu a escola de samba chamada “Vingadoras do Batuque”, que nasceu aqui na Baraúna mesmo. E de lá pra cá outros cordões, blocos e escolas foram se desenvolvendo.
Feirenses: Como a música e o samba entraram na sua vida?
Mestre Orlando: Justamente quando eu assistia esses cordões aqui na Baraúna, além das batucadas que também havia naquela época. As batucadas saíam na Micareta com uns 20 homens, um atrás do outro, tocando e fazendo ritmo. Todo mundo fantasiado e arrumado. Na frente ia uma porta-bandeira e um sambista. E eu me interessei por tudo isso, pelo ritmo. Eu tinha uns 7 anos de idade mais ou menos.
Já com 12 anos eu coloquei uma batucada de lata aqui na Baraúna, junto com meus parceiros. Pegávamos aquelas latinhas, íamos para o matadouro, pegávamos bexiga de boi, abríamos ela, colocávamos como uma pele na latinha, amarrávamos um estique e colocávamos no sol. Era nosso instrumento de percussão de primeira qualidade. Ali a gente foi vendo que numa lata maior dava um som diferente, na lata menor era outro som, e aí nós formamos a batucada com latinha e bexiga de boi.
Aos 17 anos eu fui desfilar em minha primeira escola de samba, em Salvador. Uma escola chamada Ritmos da Liberdade, no bairro da Liberdade. Ali ganhei pique nessa parte musical, tocando, diversificando os instrumentos. Aos 22 anos fui para o Rio de Janeiro, quando minha família mudou pra lá, época em que meu pai faleceu.
Feirenses: O que lhe levou a procurar uma Escola de Samba em Salvador?
Mestre Orlando: Eu fui convidado por um amigo, chamado Antonio Carlos Malaquias, que tinha família lá. Ele sabia que minha paixão era desfilar em uma escola de samba. Nessa época eu já fazia muito ritmo aqui, fazia muito samba de roda, estava ganhando um nomezinho.
Esse amigo eu considero meu mestre na arte do samba. Eu cresci no samba dentro de Salvador por causa dele, dentro da Ritmos da Liberdade. Desfilei 22 anos lá. E tive outros convites, como o do presidente da Diplomatas de Amaralina, para fazer uma participação, e desfilei 4 anos na escola. Dali pra cá vivi também entre Feira de Santana e Rio de Janeiro.
Feirenses: E o Rio de Janeiro? Como foi sua ida para lá?
Mestre Orlando: Na verdade, minhas irmãs foram trabalhar lá no Rio de Janeiro, e foram acompanhadas por minha mãe. Eu fiquei aqui morando com uma avó. Nós éramos em seis, três homens e três mulheres, mas hoje vivos somos apenas eu e uma irmã, a caçula.
Essas minhas irmãs foram para o Rio trabalhar, e lá se estabilizaram com uma moradia. Eu só fui pra lá bem depois, fazer visita, e aproveitava para fazer participações em escolas de samba. No início escolas do terceiro grupo. Isso por volta de 1967.
Lá eu tive o prazer de fazer participações na Vila Isabel, Império Serrano, Portela, Tradição, Mocidade Independente de Padre Miguel, Beija-Flor de Nilópolis, onde fui campeão três vezes, e outras. Em 1983, no meu primeiro desfile na Beija-Flor, cheguei a levar mais duas pessoas daqui de Feira, quando eu tinha uma condição mais ou menos pra isso. Um deles, um dos baluartes do samba de Feira de Santana, Valdomiro, o popular Cobrinha do Cavaco.
Hoje minha família está 50% lá dentro do Rio de Janeiro.
Feirenses: Com as dificuldades comuns aos músicos que não possuem superproduções, como você faz para garantir o sustento da família?
Mestre Orlando: Eu tenho 27 filhos, 20 homens e 7 mulheres. Acharam pouco e colocaram mais um em minha porta numa caixa de papelão. Um bebê de 3 meses que hoje tem 15 anos. Então são 21 homens e 7 mulheres. São 40 netos e 8 bisnetos. Tenho uma bisneta com 15 anos. E estou me preparando para comemorar meu primeiro tataraneto. Estou esperando… (risos).
“Eu já fui ao Rio de Janeiro pedindo carona muitas vezes pra ir e pegar o lixo do Carnaval do Rio, reciclar e tentar fazer bonito aqui em Feira de Santana.”
E pra criar esse pessoal e me dividir com o samba foi muito difícil. Eu criei os meus filhos com uma ajuda forte dos meus amigos. Sou um peão, batalhador, mas fiz amigos policiais, médicos, advogados, promotores, juízes. Pessoas que me ajudaram muito por causa do meu samba.
Aos 17 anos eu me profissionalizei como ajustador mecânico, mas só esse trabalho nunca foi suficiente. A música me ajudou muito. Eu começava a tocar quarta-feira e só parava domingo, às 22 horas, que era pra inteirar o pacote e resolver a vida de todo mundo. Mas hoje Deus me deu o direito de estar conversando e falar que todos os meus filhos estão sobre si, responsáveis, com suas famílias, e nenhum depende de mim pra levar um pão. Eles dizem que eu não devo trabalhar, que agora eu devo passear, aproveitar o tempo.
Feirenses: Os criadores dos cordões e batucadas da sua época estão vivos ainda?
Mestre Orlando: Não. Todos os nossos baluartes daquele início já se foram. Tem eu e mais uns cinco da antiga, que vieram depois desses baluartes, mas a maioria já se foi. O que nós temos são famílias dessas pessoas, dos maiores representantes do samba em Feira de Santana.
São pessoas que, naquela época, se relacionavam com o povo lá de cima através do trabalho. Porque a mão de obra das pessoas com alto poder aquisitivo era prestada por esse povo nosso de periferia: Baraúna, Tomba, Rua Nova, Campo Limpo. Esses foram os construtores do lazer do samba aqui em Feira.
Feirenses: Com 55 anos de estrada, como você avalia a valorização do samba feirense?
Mestre Orlando: O samba ainda existe em Feira, pra nós falarmos a verdade, porque nós somos insistentes. Em relação às escolas de samba na Micareta, por exemplo, nós temos um apoio dos nossos representantes, mas é um apoio pequeno, que é difícil a gente se manter com ele. É difícil fazer um trabalho de qualidade.
Talvez a Prefeitura não tenha uma obrigação de ter que bancar o samba nos valores que a gente precisa. Eu sei que a gente tem que trazer recurso também da nossa comunidade, e nós fazemos isso: rifas, bingos, feijoada no fim de semana, pra ir angariando um pouquinho para o desfile acontecer.
Porque se nós formos esperar a ajuda que recebemos do poder público, nenhuma escola vai pra rua. Não é menosprezando ninguém, é falando a verdade. Eu, como presidente da Escola Nativos de Santana, por exemplo, recebo a ajuda da Prefeitura na sexta-feira, mas os tambores estão tocando na Micareta desde a quarta. Como levar a escola pra rua assim?
Eu tenho vontade de ver o samba crescer, tenho vontade de ver o nome da nossa cidade crescer nessa matéria.
Já fui ao Rio de Janeiro pedindo carona muitas vezes pra ir e pegar o lixo do Carnaval do Rio, reciclar e tentar fazer bonito aqui em Feira de Santana. Trago fantasias usadas, abandonadas, faço a reciclagem com todo o carinho, pelo amor que tenho ao samba, e entrego a meu povo para vestir e se apresentar na avenida. Já coloquei uma ala com 45 baianas, a coisa mais bonita do mundo!
Feirenses: O desfile das escolas de samba ocorre em que local da Micareta?
Mestre Orlando: Já tem uns 10 ou 11 anos que nos colocam no Espaço Quilombola, na Avenida João Durval. Eu já venho todos esses anos brigando: não é admissível isso! Você prepara seu povo, traz do seu bairro, sua comunidade preparada para um desfile e lá você vê o nosso espaço no escuro. Dizem: “aqui é o espaço de vocês, o Circuito Quilombola”, mas é onde tem uma arquibancada muito maltratada, que não dá nem para o nosso próprio povo sentar, sem proteção nenhuma. Moto e carro circulando dentro de nossa área. Um verdadeiro descaso.
Eu sinto uma dor tão grande com isso que os nossos representantes jamais vão imaginar. Aí de dois em dois anos eles nos procuram para dar um voto para governar a nossa cidade, e depois fazem esse tipo de coisa. E não adianta questionar muito, brigar, porque não tem solução. Só tem solução com outras cabeças. Na hora do voto todo mundo está aqui. Passou a eleição, ninguém.
Não tenho nada contra ninguém e também nunca me deram nada. Tenho 27 filhos e nunca consegui trabalho pra um.
Nós só temos um dia de lazer. Esse dia de lazer que a gente tem é oprimido, discriminado. Nós estamos cansados! Tenho 55 anos de samba e não vi mudar nada ainda. O circuito principal da Micareta é o Maneca Ferreira, e nós estamos do outro lado, no Quilombola, onde ninguém nos vê. A festa está na sala e nós estamos no quintal. Por que nós não podemos participar da parte principal do sítio da festa?
“A rapaziada que está chegando agora veio pra ficar, e com certeza vamos exportar muitos sambistas.”
Vão dizer que nós somos desorganizados, que só aparecemos em cima da hora pra pegar a ajuda da Prefeitura. Mas não é isso! Precisamos de qualidade, com antecipação. Gastamos com instrumentos, reforma de instrumentos, fantasias, costura, sapateiro: tudo é no dinheiro. O que dão é pouco, não dá pra nada. Uma vez precisei da passagem pra ir ao Rio e me foi negado, fui de carona.
É bom lembrar que o circuito Maneca Ferreira foi construído pela comunidade da periferia. Quem construiu foi a gente, e fomos expulsos do nosso espaço. Antes não tinha trio elétrico. Era só batucada e cordão! Quando cresceu o bolo eles tiraram a gente. Hoje estamos num lugar escuro, sem a quantidade de banheiros adequada, até bomba soltam no nosso circuito. Quem está no camarote não vai lá ver nada. Como os empresários vão nos ajudar se nós não aparecemos, se ninguém sabe nem que a gente existe? A nossa apresentação é oculta. É duro, é muito duro fazer o samba em Feira.
Feirenses: Em relação à qualidade musical, como você avalia os sambistas feirenses, comparando com de outros lugares, como o Rio?
Mestre Orlando: Musicalmente, ritmicamente, já que a conscientização do ritmo é essencial para o samba, a qualidade dos sambistas feirenses é muito boa. A rapaziada que está chegando agora veio pra ficar, e com certeza vamos exportar muitos sambistas. Agora, eles precisam de ajuda, para não sofrerem o que eu e meus parceiros sofremos a vida toda. Nós viemos de baixo, 99% é financeiramente fraco. Mesmo trabalhando muito, é difícil ganhar bem.
Mas essa nova fase de músicos nós nunca tivemos antes. Com muita qualidade. Temos um potencial grande pela frente!
Feirenses: Finalizando, qual é o segredo para chegar aos 72 anos, com 28 filhos, tocando samba e curtindo a vida?
Mestre Orlando: Não é difícil. Os caminhos de maior eficiência são, primeiro, não ser violento. Não brigar. Também ser cauteloso na bebida e fazer amizades. Toda pessoa agressiva dura pouco. Toda pessoa que não gosta de dar respeito tem um tempo curto.
E quem não se integra em drogas tem uma tendência a viver mais. Eu tomo apenas minha cervejinha, uma pituzinha de vez em quando e mais nada. Coisas que não fazem mal a ninguém. Esse é o segredo!
Fotos: Ena Lélis