Continuando a reportagem especial sobre os(as) moradores(as) de rua de Feira de Santana, trazemos hoje três histórias de pessoas que têm suas vidas marcadas pela situação de rua. São biografias que mostram a complexidade dos nossos dilemas sociais, e o quanto precisamos olhar com mais profundidade para essas realidades.

Leia aqui a primeira parte desta reportagem!

Leia aqui a terceira parte desta reportagem!

 

Anderson

Anderson - Ex-morador de rua

A experiência de Anderson é bastante diferente da maioria dos moradores de rua. Embora tenha vivido experiências de drogadição durante sua trajetória, não foi por isso que saiu de casa. Com apenas 7 anos de idade mudou-se para Brasília, levado por um casal: “Na verdade eu fui pra Brasília iludido. Me disseram que lá era tudo diferente, que as oportunidades eram melhores por causa do governo que era tudo presente lá, e eu já vinha passando dificuldade aqui, a família passando até fome, as crianças tomando café com farinha para ir para a escola. Meio dia era ovo, tinha que dividir um omelete com sete irmãos, dentro de casa, tudo parado, mainha sozinha e eu sem pai e aí me chamaram falando que já conheciam Brasília, e que lá só para vigiar o carro ganhava cinco reias, engraxar um sapato era cinco ou dez reais e aí eu peguei e fui”.

O casal que levou Anderson à Capital Federal era de Feira de Santana, mas viviam se mudando periodicamente, viajando entre diversos lugares. Segundo ele, a mãe lhe confiou ao casal porque não tinha alternativa: “ela via que não tinha estabilidade para dar para nós, mesmo porque éramos em sete, duas mulheres e cinco homens, e ela passava dificuldades realmente, e de qualquer forma eu já saia de casa, eu já andava nas ruas aqui em Feira, nas casas dos outros. A minha vida realmente foi eu pequeno ficando na casa dos outros, eu gostava de andar na casa de barão, de gente rica. Lavava casa de cachorro, rol das casas dos outros e aí eles me davam roupa, comida, dinheiro. Aí eu falei: ‘vou sair porque vai ser um prato a menos, será um pedaço de carne a mais para meu irmão ou minha irmã'”.

A vida em Brasília não foi como esperado. Anderson acabou tendo seu trabalho explorado pelo casal: “aquele casal começou a me usar, fizeram uns cartões para eu pedir dinheiro, falando que eu era de fora e precisava de dinheiro, e aí eu saía distribuindo esses cartões e o pessoal me dava dinheiro. Mas aí eu tinha que dar esse dinheiro todo a eles. Na verdade, eu dava para guardar e dizia que queria voltar pra Feira e nisso eu achava que estava juntando dinheiro na mão deles, mas eles gastavam, usavam drogas e tudo através do meu dinheiro, eles me usavam”.

“Eu fui usuário de todo tipo de droga que você pensar, até injetadas na veia, todo tipo de droga e bebida que você imaginar eu já usei”

Ao perceber que estava sendo enganado, Anderson resolveu viver só, independente do casal, e passou a viver na rua. “Lá tinha uma assistente social que trazia a pessoa para o seu estado, e eu comecei a vir com frequência. Eu juntava umas coisinhas, cesta básica que me davam e aí eu pedia a passagem para a assistente social e viajava, deixava as coisas e voltava de carona. Sempre viajei assim, vinha de ônibus e voltava de carona. Lá em Brasilia eu morei o tempo todo na rua, sempre na rua, depois, maior de idade, eu alugava uma casa, mas não dava conta de pagar o aluguel”. Anderson se emociona ao falar da ocasião em que comprou a primeira televisão para a casa da sua mãe: “eu sempre assisti televisão na casa dos outros, e quando eu pude comprar uma televisão eu trouxe para minha mãe, lá de Brasília, eu comprei uma televisão e falei com ela: ‘aqui olha, essa é da nossa casa, para não assistir na casa dos outros’. Minha irmã gostava de novela, desenhos. Foi difícil, mas é isso aí.

Nas ruas de Brasília, Anderson também se envolveu com o consumo de drogas, e é considerado um exemplo de superação nesse sentido: “eu fui usuário de todo tipo de droga que você pensar, até injetadas na veia, todo tipo de droga e bebida que você imaginar eu já usei e hoje, graças a Deus, sou evangélico e tirei a droga de minha vida. Podem usar perto de mim que não sinto nada. Eu hoje na verdade sinto nojo de ver uma pessoa usando drogas e eu queria que eles sentissem o nojo que eu sinto, agora me diga como tirar um usuário de drogas?”. Ele mesmo responde: “eu queria que o governo do estado da Bahia implantasse um local para disponibilizar saúde, educação e isso com todos os órgãos atuando ali, esse local seria uma casa de passagem, mas primeiro você precisa saber quem é que está na rua, sabendo identificar eles com documentação, e aí essa pessoa fica nessa casa até regularizar a vida dele, às cinco da manhã ele sai para resolver as coisas e às 17h ele retorna, e é abordado para ver se não está entrando com droga, se estiver alcoolizado não deve entrar na Casa. É tudo isso! Mas isso só acontece quando ele quer e os que não querem essa oportunidade, infelizmente vai viver excluído, porque quando ele ver o amigo dele evoluindo ele vai procurar, porque se ele quer que o direito dele seja cumprido ele tem que passar por isso. Aqui em Feira tem o projeto que acolhe o pessoal em situação de rua, mas eu não vejo eles trabalharem nesse sentido”.

Anderson não mora mais na rua. Tem um filho de 16 anos, nascido em Brasília, que ele não sabe ao certo onde mora – ele suspeita que esteja em Salvador, com a mãe, mas Anderson já foi à procura e não o encontrou. Atualmente, trabalha e realiza ações voluntárias para ajudar moradores de rua em Feira de Santana.

Adriana

Adriana - Moradora de Rua

Um dos depoimentos mais importantes que colhemos foi o da moradora de rua Adriana, conhecida como “Nana”. Com 27 anos de idade, ela já está há 10 anos na rua. Saiu de casa porque seus pais não aceitavam seu relacionamento com outro jovem, e então foi morar na casa dos pais dele. Por causa do consumo de drogas, acabaram indo para a rua: “começamos a usar drogas, aí preferimos ficar na rua pra não dar trabalho. Mas íamos em casa só tomar banho e voltar para dormir na rua”. O relacionamento conturbado durou alguns anos, até que eles se separaram: “eu apanhava muito dele, e chegou uma época que eu não queria mais viver com ele. Depois eu soube que mataram ele e hoje vai fazer cinco anos que eu moro mais Charles que é morador de rua também”.

Ela diz que, entre os moradores de rua, ela não sofre discriminação por ser mulher: “eu vivo na rua mas não vejo ninguém me xingar, vivo esse tempo todo na rua, mas nunca apanhei na rua. Só não vivo melhor porque não tenho ainda minha moradia para colocar minha cabeça dentro e dizer que é meu. Eu hoje só desejava ter o meu cantinho”.

Adriana diz sua mãe faleceu, e a única pessoa com quem tem contato na família é seu irmão, que mora com esposa e dois filhos. Ela diz que vende frutas e pano de prato “quando aparece”.

“O que mais me tirou da droga foi esse homem. O carinho, o amor que ele sente por mim, o cuidado em me tirar da rua, me tirar dessas amizades”.

Perguntada se tem filhos, Adriana diz que tem três: “Eu dei eles para um pessoal, mas são registrados em meu nome. Um de sete, um de onze e uma menina de cinco. Graças a Deus todos os meus filhos teve a oportunidade de alguém me ajudar. O primeiro eu tive a ajuda de minha mãe, o segundo eu tive ajuda dessa mulher que cria ele. Quando ele nasceu eu vivia na rua, dormia na rua, usava drogas com ele dentro da minha barriga e chegou a época em que comecei a sentir as dores e essa mulher que eu dei meu segundo filho me ajudou muito. Eu chegava na casa dela com três dias sem dormir e ela deixava eu dormir, fazia comida para mim e nunca teve preconceito, aí quando eu tive ele ela foi me buscar de táxi e eu passei meu resguardo na casa dela.

Teve um dia que eu falei: ‘dona Maria a senhora quer esse menino? Para ele não ir para rua comigo e o juizado tomar’, aí ela falou: ‘Nana, eu já estou de idade’, mas ela ficou e eu registrei a criança no nome do marido dela, que depois de um tempo quis tomar o menino, foi quando eu fui atrás do pai biológico para fazermos DNA e aí a criança ficou com dona Maria. Depois de um tempo soube que mataram o pai dele. Mas o menino sabe quem eu sou, me chama de mãe, ela nunca me escondeu dele. Todos os meus filhos me chamam de mãe e sabem quem eu sou”.

Adriana não se considera mais dependente do crack. Segundo ela, não usa a droga todos os dias. Perguntada sobre a razão da frequência ter diminuído, ela diz: “o que mais me tirou da droga foi esse homem. O carinho, o amor que ele sente por mim, o cuidado em me tirar da rua, me tirar dessas amizades. Tudo que faz a pessoa entrar nessa vida, são as amizades é a maneira de você viver. Se eu me afasto dessas pessoas, eu me afasto das drogas”.

 Joel

Joel - Morador de Rua

Além de morador de rua, Joel (39 anos) é um andarilho. Quando o entrevistamos, ele tinha vindo de Guarulhos-SP para Feira de Santana andando. É um dos casos de moradores de rua que, embora estejam dormindo no espaço público de Feira, são oriundos de outro município. Joel diz que caminhou cinco meses na pista até chegar em aqui.

Joel nasceu no município de Gandu, de onde saiu aos 14 anos após discutir com a família: “Eu discuti dentro de casa, saí e nunca mais voltei. Minha mãe não gostava de mim não. Tem uns vinte anos que eu não a vejo, nem ninguém da família, eles moram em Dias d’Avila, mas onde eu não sei. Já fui lá e procurei, eu vim mais por causa disso e aí eu fiquei aqui na rua”.

Joel foi parar em Guarulhos também andando, mas não sabe explicar muito bem por que faz isso: “eu sou assim, deu um negócio na cabeça, eu vou!”. Ele conta as dificuldades de viver na rua: “Na rua, um dia dorme enrolado, outro não, fica dias sem comer, só água que as pessoas dá, às vezes um banho ou roupa e aí vamos vivendo”.

“Aqui as dificuldades são muitas, não tem trabalho, é um maloqueiro querendo matar o outro, tem que dormir com os olhos abertos”

Ele também admite o consumo de drogas: “Como é que não faz? É muito difícil para quem estar na rua não fazer. Minha vida mesmo é cachaça, porque se eu fosse para o crack ia me acabar todo.

Joel estava buscando dinheiro para pagar a passagem de volta a Guarulhos, mas estava tendo dificuldades porque não possui documentos. Assim como outros entrevistados, ele fala da violência nas ruas de Feira de Santana: “aqui as dificuldades são muitas, não tem trabalho, é um maloqueiro querendo matar o outro, tem que dormir com os olhos abertos porque se não eles pegam e levam suas coisas”.

Leia aqui a primeira parte desta reportagem!

Leia aqui a terceira parte desta reportagem!


Texto: Danillo Ferreira

Entrevistas: Danillo Ferreira e Mayara Nayllane

Fotos: Orlando Junior e Danillo Ferreira

Apoio: Orlando Junior e Igor Freitas