Poucos problemas são tão simbólicos das contradições vividas pela nossa sociedade como o contexto das pessoas em situação de rua. Embora caminhemos cotidianamente nos deparando com moradores e moradoras de rua como se eles(as) fizessem naturalmente parte da paisagem urbana, ou pelo menos fugindo, por medo, das suas presenças avessas aos padrões que celebramos, eles(as) existem, como representação de vários desequilíbrios, incompreensões e paradoxos.

De acordo com o sociólogo Matheus Barros, pesquisador que estuda o contexto dos moradores e moradoras de rua em Feira de Santana, definir com exatidão a quantidade de pessoas nessa situação é muito difícil na cidade: “em uma pesquisa recente feita em Feira de Santana entrevistamos 104 pessoas. Mas esse é um número amostral. A complexidade começa com o próprio conceito de ‘morador de rua’. Tem gente que passa o dia todo na rua, tem gente que mora, de fato, na rua, tem gente que passa um tempo na rua, outro em casa. Nós, pesquisadores, vemos de um jeito, o município de outro, a sociedade de outro… Isso prejudica o entendimento dessa realidade. Feira de Santana é entroncamento, ou seja, existe um número volátil de moradores por conta das condições geográficas e culturais”.

Matheus lembra que há levantamentos, como o do Movimento População de Rua que atua em Feira de Santana, que apontam para cerca de 300 pessoas em situação de rua na cidade. “É um número difícil de se chegar com exatidão”, ele diz.

Nesta reportagem especial trazemos um aprofundamento na análise dos dilemas das pessoas em situação de rua em Feira de Santana. Um trabalho que durou mais de 3 meses, ouvindo histórias e depoimentos das pessoas diretamente envolvidas com essa questão: desde aqueles(as) que estão em situação de rua, passando por membros de organizações que apoiam essas pessoas, até o Poder Público Municipal.

A matéria é longa, pois tenta não minimizar diversos elementos que devem estar presentes na apreciação desse cenário. Além de histórias de vida impactantes, trazemos visões distintas sobre as formas de lidar com a questão.

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Larica

Moradores de rua de Feira de Santana - Larica

Um dos fatores que levam as pessoas a viverem em situação de rua é o consumo de drogas, principalmente o crack. “Eu acho que a história de todo mundo começou assim. Começou numa maconha, aí a grande maioria começa a ir no teste, depois começa ir a vera, nisso começa também a cortar os laços com a família e aprontar na sua área e as pessoas quererem lhe matar e você não pode mais ir. A coisa vai ficando feia, vai fechando o círculo por aquele lugar que você tinha seu lar e aí você tem que migrar para outro lugar”, diz “Larica”, um jovem de 26 anos, oriundo do Bairro Mangabeira, que há 8 vive na rua.

Ele conta como se iniciou no consumo de drogas pesadas: “A verdade foi que eu tinha uma mulher que costumava me ver nos finais de semana, quando ela não vinha no sábado, vinha na sexta e nesse período eu fumava só maconha. Num certo dia, ela demorou de chegar, aí eu desci pra fumar lá embaixo e os caras que fumavam comigo mais cedo também estavam lá. Eu vi só aquele brasão, aí quando eu cheguei perguntei que ‘porra’ era aquela, e os caras ficaram até com vergonha. Eles estavam fumando ‘piti’. Mas aí eu disse ‘eu vou também!’.

Foi depois disso que eu conheci o crack. Depois disso eu fui preso, porque fui viciando ainda mais nessa droga, aí quando eu saí, dei um tempo, mas depois voltei. Teve um tempo que conheci um menino de menor que andava junto comigo, aí nós viemos para a Baraúnas, no fundo da Estação da Música, ele fumava a porra dele na lata e eu fumava só maconha. Aí de repente eu falei: vou ver como é essa porra! Rapaz, pra quê? Até o dia de hoje. Já são 8 anos. Passo um mês, dois, três, mas nunca paro de vez porque sempre quando rola uma atribulação, ou quando você tá bebendo, a coisa só chama para aquele lado e aí o negócio é ‘barril’”.

“Você tem tudo e ao mesmo tempo não tem nada. Você não paga água, luz e comida só paga se quiser”

Embora os moradores e moradoras de rua sejam vistos por muitos como mero problema de segurança, esse é justamente um ponto que boa parte deles se queixam. O medo da violência é um dos principais problemas para quem mora na rua. Larica fala dessa e de outras dificuldades: “o fator principal é as covardias, o cara lhe pegar à noite, você falou alguma coisa que o cara não gostou e aí ele fica na dele, quando você tá dormindo ele pica uma pedra em sua cabeça, chega à noite joga álcool em você, aí eu fico meio cabreiro, tem vezes que eu até durmo em cima de lage. Mas assim, nessa parte é a violência e a outra parte é o tempo chuvoso que é ‘foda’, você deixa suas coisas num lugar, aí quando o tempo fecha e você chega tá tudo molhado. Se você não tiver aquelas cobertonas grande você tá lenhado. E se você tiver mulher e filho? Que nem eu já passei por um aperto desse…”.

Larica tem uma companheira e uma filha de 15 anos, ambas moradoras de rua. A mãe dele ainda mora na Mangabeira, mas Larica prefere ficar na rua: “Eu vou pra casa, volto, mas não consigo mais ficar em casa. Eu vou em casa, fico um ou dois dias, mas eu não consigo morar mais lá e também não consigo passar o dia todo dentro de casa. Eu já acostumei com essa vida livre”.

Perguntado sobre o que considera ser uma “vida livre” ele afirma: “Você tem tudo e ao mesmo tempo não tem nada. Você não paga água, luz e comida só paga se quiser”.

Ele reclama do tratamento que os órgãos públicos dão aos moradores de rua: “Tem que parar de barrar os direitos que temos. Tem que parar de querer dar curso de artesanato. Porque não bota os cursos certos?! Como de pedreiro, eletricista, encanador, esses tipos de curso… Tudo eles querem botar muita dificuldade por pouca coisa que a gente quer. A gente não quer muito não, queremos o básico, o pouco”.

Andreval

Os moradores de rua de Feira de Santana - Andreval

Quando entrevistamos Andreval ele estava em situação de rua, mas dormindo na Casa de Passagem disponibilizada pela Prefeitura Municipal. Desde 2002 Andreval, que tem suas origens no bairro da Queimadinha, oscila entre a situação de rua e a moradia com a família – ele tem um casal de filhos. Dessa vez, está há mais de 8 meses na rua.

“O problema com a droga foi minando a situação em casa. A família se reuniu e falou: ‘já dei todas as oportunidades, lutamos por você e percebemos que não dá para você continuar no seio da família. Nós te amamos, mas você aqui dentro tá dando trabalho muito grande, trazendo drogas para dentro de casa e seus filhos estão crescendo e tendo uma visão muito difícil em ver um pai ali usando drogas’. Porque eu usava drogas dentro de casa e naquele tempo minha filha tinha dez anos e eu usava no quintal, no banheiro e meus filhos crescendo e vendo aquilo, eu pegava as coisas de dentro de casa para vender, vendia televisão, geladeira e aí minha esposa, que viveu comigo 17 anos, ela sentiu que não tinha mais jeito, e aí eu vim parar na rua”.

Andreval diz que um dos fatores que estão lhe ajudando a se erguer é o conhecimento dos direitos que possui: “Eu conheci várias pessoas que diziam que eu tinha direito a isso, a aquilo como morador de rua, mas eu nunca quis ir para o Centro POP (Centro de Referência Especializada da Assistência Social para População em Situação de Rua). Eu vivia de uma forma assim: acordava pela manhã, fazia meu bode durante o dia, à noite eu ia buscar minha droga para passar a noite usando, ou seja, eu ia dormir drogado e acordava para fazer o corre para comprar droga para passar a noite.

Agora em 2016 eu parei e falei: ‘eu tenho que ver como o Município pode me ajudar, já que agora eu não tenho mais o apoio de minha família’, eu tinha que procurar uma forma para eu me levantar e aí eu encontrei a assistente social do Centro POP, que chegando lá eu não tinha nem meus documentos. Aí eu descobri que eles poderiam me encaminhar para minha habitação, além de tirar identidade, CPF, carteira de trabalho, cartão do SUS etc”.

“Eu via que minha esposa sofria, eu via ela chorando quando eu chegava em casa”

Sobre o trabalho desenvolvido pelo Centro POP, Andreval tece algumas críticas: “Eu agradeço a Deus, primeiramente, e ao meu esforço porque o caminho que eu trilhei em nove meses tem gente que não consegue. Eu tenho amigos no papelão que ainda não tem um documento, aí tem quem diga que é porque eles não querem, mas não é. Às vezes eles chegam no Centro POP e não tem uma assistente social que diga: ‘você, a partir de hoje, faz isso’, tem que ser assim, que explique os nossos direitos, então falta informação para o morador de rua, de mostrar onde ele deve buscar os seus direitos. Nós devemos saber onde podemos buscar esses direitos e há uma distância muito grande na informação, onde é que vou buscar, com quem é que vou falar? Eles pegam você, dá um café, dá um almoço, e pronto, você fica por lá”.

Andreval considera que grande parte dos moradores de rua vivem nessa condição não porque querem. Falando da sua trajetória, ele diz que a decisão passa também pelo amor que sente pela família: “eu via que minha esposa sofria, eu via ela chorando quando eu chegava em casa, eu passava dias fora e quando eu voltava eu via o estado que eles estavam. Então, eu preferia ir para a rua, porque não queria ser mais um problema, eu fui pra rua para ver se acabava com o sofrimento da minha família, então assim, eu fui pra rua por causa da droga, porque se não fosse a droga eu estava em casa, mas pela droga eu fui pra rua. Você já pensou o que é chegar em casa e estar todo mundo sentado, com o celular espalhado e quando você bate na porta e fala ‘é André!’, todo mundo corre e esconde as coisas? E eles estão certos, porque já aconteceu de eles saírem e me deixarem dentro de casa e na volta não ter mais um móvel, então para evitar essas coisas é melhor a pessoa sair”.

Ao reconhecer o consumo de drogas como o grande problema de quem chega à situação de rua, Andreval lembra que iniciou aos 15 anos: “Minha primeira droga foi a gasolina. Daí eu e meus amigos começamos a tomar Diasepan, Roupinol. Depois, ‘vamo pra cola!’… E assim foi crescendo, até chegar no crack. E pra pessoa deixar de consumir droga, primeiro, ele tem que querer. Segundo, ele tem que ter uma ajuda pra que ele possa sair da situação da drogadição, ou seja, um plano de redução de danos e a habitação, que é fundamental nisso. Porque se eu estou nas ruas e desejo parar de usar droga, mas eu vou estar no papelão com meu irmão aqui… Eu parei, eu não quero mais a droga, e o outro aqui do lado, fumando uma pedra. Eu sou viciado em pedra, estou querendo dormir, e o cara tá aqui fumando. Então… Essas condições não favorecem!”, diz ele.

 

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Texto: Danillo Ferreira

Entrevistas: Danillo Ferreira e Mayara Nayllane

Fotos: Orlando Junior e Danillo Ferreira

Apoio: Orlando Junior e Igor Freitas