Edcarlos Venâncio é a principal liderança do Movimento População de Rua em Feira de Santana. Iniciou sua trajetória como estudante da Igreja Católica: “estudei pra ser padre, aí estudei muito a reflexão da teoria da libertação. Fui para esse lado da instituição e no decorrer da caminhada, não fiquei na linha religiosa”.

Em 2006, conheceu a Comunidade Trindade, em Salvador, um templo abandonado da Igreja Católica, na Cidade Baixa, onde as pessoas são acolhidas e têm contato com diversas iniciativas para elevação da autoestima e recuperação da identidade. “Quando eu cheguei lá na Trindade eu gostei, porque trabalha muito a espiritualidade na vida comunitária. Lá eu encontrei uma pessoa chamada Maria Lucia. Com ela e outras pessoas eu descobri uma nova maneira de trabalhar, foi quando aprendi a fazer colar de linha e de nylon, e esses foram meus primeiros trabalhos artesanais. Lá tinha momento de adoração, de lazer. E eu que trabalhava diretamente com esse trabalho do artesanato, me encantei com outro trabalho, que foi o bazar. A gente partilhava as roupas e botava para vender, só que lá era diferente, as pessoas que passavam por lá em situação de rua, as roupas deveriam ser mais baratas do que já eram, e até hoje é assim. Se eles tiverem cinquenta centavos nós temos que vender, e se não tiver nada eles não vão deixar de levar. E Lucia era a pessoa que falava com as pessoas, as convidava para subir, tomar banho, e aí já encaminhava essa pessoa para lá, era uma espécie de estratégia de convidar a pessoa para conhecer o espaço.

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“Também trabalhava com reciclagem, lá tem um galpão de reciclagem onde o pessoal coletava material na rua ou chegavam pessoas de escolas, faculdades e nos ofertavam. Tínhamos também um trabalho ligado à comunicação que era o jornal Aurora da Rua. É um jornal que vai fazer dez anos, e tem toda uma dinâmica própria. A própria elaboração do jornal era chamada de oficina de texto, onde íamos para a rua, escutávamos o pessoal e quem sabia escrever escrevia, depois passava para a galera ver se gostou, porque o objetivo do jornal era apresentar as pessoas em situação de rua com um outro olhar, além de gerar renda. Chegamos a vender cerca de mil jornais e isso só com um vendedor, que se chamava Jorge, ele sempre gostou de trabalhar com vendas. Então o jornal possibilitou isso”.

Edcarlos, que é nascido no bairro da Baraúna, teve conviveu alguns anos com os moradores de rua em Salvador. Essa experiência foi definitiva para iniciar um trabalho em Feira de Santana: “na verdade, quando eu vim para Feira não foi com a ideia de implantar o movimento, mas sim com a ideia de ajudar o movimento de rua que faz parte da Igreja que eu estou inserido, e quando eu vinha em Feira já visitava. Comecei a vir para a Matriz, no meio do povo, conversando com um e outro. E pensei: “vamos montar o movimento em Feira!”. Comecei indo para o Centro Pop interagindo, fazendo visitas, rodas de conversas, indo em encontros e formamos um diálogo muito bom. Muitas pessoas perguntam como sobrevivemos ou se recebemos ajuda de algum deputado ou de alguém. Eu deixo claro que não, são recursos próprios que doamos de acordo com o que podemos. Nosso trabalho é feito por amor”, diz ele mostrando incômodo com qualquer suspeita de relação entre o trabalho do movimento e a política partidária.

Edcarlos Venâncio, coordenador do Movimento População de Rua em Feira de Santana

Edcarlos Venâncio, coordenador do Movimento População de Rua em Feira de Santana

Para ele, não é papel do Movimento ser gestor de qualquer bem material que beneficie as pessoas em situação de rua: “o que entregamos hoje é a possibilidade deles lutarem pelos seus direitos. Não temos pretensão nenhuma de fazer como algumas pessoas fazem, que é dar comida. Nosso papel não é dar comida, roupa, emprego ou casa, nosso papel é mostrar que eles têm direitos e eles estão sendo negados. Não é conquistar, porque eles já têm, nós indicamos onde eles podem buscar seus direitos. E se eles chegam no Centro POP e não conseguem resolver suas demandas, eles voltam e informam, a partir daí o movimento os acompanham”.

Durante nossa reportagem encontramos muitos moradores de rua com um grau de conscientização e análise crítica incomum para a média da população. Em muitos casos, esse engajamento é a forma encontrada para voltar a atenção para questões mais profundas, ajudando na redução do consumo de drogas e de práticas indignas. “Nós levamos a eles a consciência de seus direitos: ‘vocês que estão na rua tem direito de ir, vir e ficar. Se ele quer ficar na praça, ele tem direito de ficar, então a gente mostra a eles esses direitos que é do cidadão e dever do Estado dar assistência'”.

Sobre as dificuldades enfrentadas com o Poder Público, ele afirma: “nós não brigamos com gestão, nós temos um Estado de Direito nas três esferas: União, Estado e Município, e tratando de Feira, temos alguns serviços implantados, voltados para população de rua, como o Centro POP, o Serviço de Abordagem e o Consultório na Rua. O Centro POP para a gente é o centro de referência, pois tem uma equipe multidisciplinar composta por técnicos, assistentes sociais e profissionais em várias outras funções. No serviço de abordagem tem o pessoal que vai para a rua conhecer a realidade de cada um deles, que interage com o Centro POP, o Consultório na Rua é ligado à saúde, onde compõe médico, psicólogo, enfermeira e motorista, tem também o restaurante popular e tudo isso são serviços implantados depois da nossa chegada.

“Se eu tenho que ir ao banheiro, o que vou fazer? Eu não posso entrar na Rodoviária, eu não posso entrar na loja… Eu vou fazer isso onde? Não tem banheiro público em Feira de Santana!”

Agora, qual é o desafio, que na verdade é a questão crítica do movimento? Quando chegamos aqui não tinha serviço nenhum e o Município assumiu a Política Nacional da População de Rua, eles abraçaram a causa, rendo orçamento destinado, mas mesmo assim reclamam o tempo todo que o orçamento é curto. Mas é o município que faz a precariedade, com a falta de concurso público, salários baixos, e uma grande rotatividade de funcionários. Fora as pessoas que não tem perfil para trabalhar com pessoas de rua. A falta de capacitação também é muito prejudicial para o nosso movimento, além de existir um preconceito muito grande por parte de alguns servidores”, diz ele.

Ele critica também a infraestrutura dos serviços disponíveis para quem está em situação de rua: “mesmo que eu não queira sair da rua, eu tenho que ter os serviços básicos. Se eu tenho que ir ao banheiro, o que vou fazer? Eu não posso entrar na Rodoviária, eu não posso entrar na loja… Eu vou fazer isso onde? Não tem banheiro público em Feira de Santana! Se vocês forem na estrutura do Centro POP, se vocês forem usar o banheiro, você vai falar: ‘isso aqui não existe não’! É desumana! O curioso é que, em 2011, 2012, não era. E é a mesma gestão. Aqui em Feira tem isso… A coisa começa boa, as peças que fazem a coisa funcionar são tiradas, e bota outras peças que destroem.

“O município diz que o Movimento tem o papel de brigar pelo aumento do orçamento por parte do Estado e da União. A gente briga pelo orçamento. Mas a gente espera que tenha um retorno na ponta. Quem mais viola direito da população de rua hoje em Feira de Santana são os próprios equipamentos. Não pode faltar verba, mas o problema maior hoje é gestão!”. Ele diz que tem acesso aos diversos responsáveis pelo sistema no Município, inclusive o Secretário de Assistência Social, mas reclama que o Prefeito Municipal nunca recebeu o Movimento para dialogar: “Já tentamos, já enviamos ofício, já fomos até a porta do Gabinete do Prefeito, mas até hoje… Não recebe! A gente só quer falar com ele da política que tem que ser cumprida. Nós acreditamos que os secretários não levam tudo pra ele. A gente respeita a hierarquia… já seguimos os trâmites todos. E quando eles não recebem a gente, nós recorremos a outros órgãos: Ministério Público, e Defensoria Pública”.

Os serviços públicos para os moradores de rua em Feira de Santana

O Centro de Referência Especializado de Assistência Social para População em Situação de Rua foi fundado no ano de 2011, com o objetivo de fazer valer a garantia dos direitos das pessoas que vivem na rua em Feira de Santana. Além de encaminhar essas pessoas para o mercado de trabalho e empreendimentos habitacionais, o Centro Pop também trabalha com a viabilização de transporte (pagamento de passagem) para pessoas que foram assaltadas ou passaram por algum problema e que não conseguiram voltar a seu destino. Na condição de entroncamento urbano, Feira de Santana enfrenta muitos casos desse tipo.

Cacilda Nogueira, conhecida como “Tilda” pela população de rua na cidade, descreve os trabalhos desenvolvidos no Centro: “aqui no Centro nós trabalhamos fazendo valer a garantia de direitos. Se eles são usuários de drogas e desejam se curar do problema, nós enviamos para o Centro de Recuperação. Temos também a Casa de Passagem, que é para as pessoas que estão de passagem pela cidade e perderam documentos ou foram assaltadas. Nós a encaminhamos a essa casa até que providenciarmos as passagens para esse indivíduo se deslocar até sua cidade. Assim como também temos os de Feira de Santana, que ficam em situação de rua por conta de problemas com sua família, laços fragilizados ou rompidos, falta de emprego ou uso de drogas. Então eles vão à casa de passagem enquanto nós fazemos esses trâmites de conciliação com familiares e a inserção no mercado de trabalho para que essas pessoas sejam inseridas novamente”. Tilda diz que o Centro atende entre 15 e 40 beneficiários por dia. Segundo ela, pessoas de municípios circunvizinhos também vão ao Centro para resolver demandas sociais.

“Nossa equipe é formada por uma coordenação, três assistentes sociais, um pedagogo, um advogado e uma psicóloga. Temos também um administrativo, uma equipe de abordagem, que é composta por outra técnica, assistente social e dois profissionais educadores”. Ela elogia a estrutura disponível no Centro Pop: “Aqui o nosso prefeito tenta fazer na medida do possível o bastante. Nossa equipe aqui é completa. Não nos falta nada, ou pouco ou muito temos nosso café da manhã, lanches e toda equipe organizada, material de limpeza, temos tudo. Passamos as mesmas dificuldades que todo país está passando, mas em termos de Município, estamos bem abastecidos”.

Ildes Ferreira

O Secretário de Desenvolvimento Social, Ildes Ferreira

O Secretário de Desenvolvimento Social, Ildes Ferreira, reclama dos recursos disponíveis: “Nós temos uma mixaria, de R$10 mil reais do governo estadual e R$10 mil reais do Governo Federal. Só! Não dá pra nada! Não recebíamos R$30 mil do Governo Federal, tentamos repor, mas não conseguimos repor, desde 2015. O resto é o próprio município que tem que botar”.

Ildes reconhece dificuldades: “se você me perguntar… Atende a todos? Eu digo, não. Não atende a todos. Tem bem mais moradores de rua que precisam desse benefício e nós não conseguimos atender. A demanda é muito maior do que o que nós podemos ofertar de serviço. Isso eu reconheço!”. Ele lembra que foi iniciativa do Município aprovar a Leiº 3482/2014, que institui a Política Municipal para a População de Rua: “nós dialogamos com o movimento, a Política para a População de Rua tem um comitê gestor, com a participação da sociedade, e nós estamos tentando aplicar aquilo que está ali. Mas não é uma coisa simples… Os recursos são muito escassos diante das necessidades”.

“É um trabalho muito complexo. Algumas pessoas não têm, de fato, qualificação para aquele trabalho, isso eu reconheço. Mas tem pessoas dedicadas, honradas… Tem conquistas, mas têm dificuldades também.”

Já a coordenadora do Centro POP aponta como maior dificuldade a falta de vagas de emprego para inserir os moradores de rua no mercado de trabalho: “Se tivéssemos mais parcerias seria mais fácil, pois as vagas de emprego dadas pela Casa do Trabalhador são poucas. Eles vão para o centro de recuperação, se regeneram e entram no mercado de trabalho e dá certo. Mas, quando vão para um centro desses, passam nove meses, quando saem e não acham emprego, vão para a rua e a cabeça deles pensam logo em voltar ao mundo de novo”.

Sobre a mudança de funcionários, Ildes Ferreira diz que é raro ocorrer uma mudança, “embora poucas pessoas queiram ficar lá. Se por acaso sai algum funcionário, o morador de rua tem a obrigação de procurar a coordenação e explicar: ‘minha situação é essa’, pra encaminhar”. Mas ele reconhece a carência de pessoal qualificado: “a equipe tem, mas o pessoal é qualificado pra esse tipo de público? Eu diria, em parte! É um trabalho muito complexo. Algumas pessoas não têm, de fato, qualificação para aquele trabalho, isso eu reconheço. Mas tem pessoas dedicadas, honradas… Tem conquistas, mas têm dificuldades também”.

Para o Secretário de Desenvolvimento Social, a dificuldade não é apenas a falta de recursos da Prefeitura, há, segundo ele, uma dificuldade dos próprios moradores de rua: “uma parte da dificuldade é deles. É um público em situação degradada, que tem dificuldade em dar um passo à frente. Boa parte é usuário, e não é uma coisa simples, é uma situação muito complexa. Alguns deles são metidos com marginalidade, com atividades ilícitas, e nós não somos polícia. Vou dar um exemplo: o Centro POP foi roubado… Por eles! Por assistidos nossos. Eu tenho as imagens, eu sei quem foi. Tenho nome e imagem. Nós ainda não levamos pra polícia. Vamos tentar fazer um trabalho educativo, pra eles darem um passo à frente. É um público com dificuldades próprias. Tem morador de rua que não tem nada, que precisa do poder público para ampará-lo. Mas tem morador de rua que tem contracheque! É um público muito diferenciado, não é uma situação homogênea”.

Ildes também tem críticas ao Movimento População de Rua: “o Movimento trata do morador de rua de uma forma muito protetiva. Trata do morador de rua como se ele fosse incapaz, tem que estar colocando no colo, dando papa na boca… Acho que não pode ser assim. Tem que responsabilizá-lo como ser de direito, ser cidadão, mas com responsabilidades. E tem que correr atrás! Se ficar a vida todinha esperando acontecer, não vai acontecer. Tem morador de rua há dois anos recebendo benefício… A gente vai cortar! Porque não está fazendo nenhum esforço. Ele tem que fazer a parte dele! Não tem milagre! Ele não vai sair da lama se ele não se esforçar”.

Falhamos enquanto sociedade

Moradores de Rua de Feira de Santana

Alimentação, vestimentas, abrigo… Esses são elementos primários presentes na vida da maioria das pessoas, que nem sequer são percebidos como necessidades, tão acostumados estamos com esses recursos. Para quem vive na rua, tudo isso é luxo. Mas a condição de vida dos moradores e das moradoras de rua é precária não apenas por conta disso. Aliás, esse parece ser o menor dos problemas.

No contato direto com essas pessoas, é possível sentir um grande déficit de auto-estima. Sentimentos de descrença, revolta e tristeza são bastante comuns nas expressões da fala e do olhar. Não é preciso ter grande sensibilidade para detectar em muitos deles um vazio, um desnorteamento, um incômodo por vezes ansioso, por vezes raivoso.

É muito claro, como mostraram alguns relatos, que a relação com as drogas é uma espécie de tentativa de preenchimento desse (ou desses) vazio(s) com algum prazer, algum devaneio. Embora o consumo de drogas, em especial o crack, tenha profundos efeitos negativos no sujeito, há algo anterior ao início do consumo que precisa ser percebido. Talvez o grande mal causado pela droga seja manter o indivíduo no buraco em que ele já estava.

“Eles não têm endereço, e vivem cotidianamente inspirando medo em quem passa.”

Na rua, não há privacidade: o sono, o sexo e as necessidades fisiológicas mais básicas precisam ser compartilhadas com o público, ou escondidas da forma que for possível. Eles não têm endereço, e vivem cotidianamente inspirando medo em quem passa – embora eles mesmos considerem a violência o principal problema de levar a vida nas ruas.

De fato, há uma diversidade enorme de histórias, motivações e perspectivas entre os moradores de rua. Há quem chore lembrando da vida com a família, há quem se recuse a voltar a morar em casa, por apreciar a independência na rua: algo muito difícil de compreender, e aceitar, em uma sociedade capitalista, onde a medida da cidadania são os bens conquistados através do trabalho.

Trata-se de uma realidade muito complexa, cheia de contradições e pontos sensíveis. A cada um de nós, importa considerar não o fracasso individual de cada uma dessas pessoas, mas o fracasso coletivo de uma sociedade que não educa, não acolhe, não compreende, não ama. Em cada uma das pessoas que conversamos percebemos que os obstáculos internos cedem com facilidade àqueles que se aproximam com atenção, amorosidade e compaixão. Precisamos, coletivamente, insistir nisso.

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Texto: Danillo Ferreira

Entrevistas: Danillo Ferreira e Mayara Nayllane

Fotos: Orlando Junior e Danillo Ferreira

Apoio: Orlando Junior e Igor Freitas