O Brasil é o país onde uma mulher é vítima de estupro a cada 9 minutos. A cada 2 minutos uma mulher registra um caso de agressão tipificado na Lei Maria da Penha. Na política, a representatividade das mulheres brasileiras é ínfima: apenas 11,2% dos cargos parlamentares são ocupados por mulheres. No Afeganistão, a taxa é de 27,4%.

Apenas esses dados são suficientes para afirmar que vivemos em uma sociedade machista, que reserva às mulheres um lugar marginal em seus diversos setores. Se considerarmos os estereótipos e as construções simbólicas em torno da mulher, e de seu corpo, teremos uma compreensão ainda mais profunda do problema.

Num tempo em que os algoritmos priorizam a publicação de imagens nas mídias sociais, e que a quantidade de likes e seguidores determinam o posicionamento profissional e emocional das pessoas, é importante refletir sobre as concepções que temos privilegiado sobre o corpo das mulheres. O que tem sido definido, ou não, como belo? O que é, ou não, considerado feminino?

Assim como a filosofia e a literatura tem a capacidade de refletir e influenciar o espírito do seu tempo, a Arte Fotográfica, cada vez mais, pode servir de instrumento de transformação e compreensão dos valores que sustentamos e aprendemos através das imagens. Por isso é fundamental conhecer, destacar e dialogar com mulheres fotógrafas que estão fazendo uma verdadeira revolução (est)ética através dos seus trabalhos.

Selecionamos três dessas artistas feirenses, fotógrafas profissionais, que vêm se afirmando e afirmando mulheres através das suas lentes. Conheça a seguir um pouco do trabalho e da visão de mundo de Ana Reis, Manuella Albertine e Ananda Nunes.

Ana Reis

A fotógrafa feirense Ana Reis

Autorretrato da fotógrafa Ana Reis

Ana Reis começou a se entender fotógrafa quando fazia o curso de História na Universidade Estadual de Feira de Santana: “tinha uma câmera digital compacta e sempre levava para as viagens de campo. Numa dessas, alguns colegas me chamaram atenção para a qualidade das minhas fotografias, e foi aí que eu comecei a ver o ato de fotografar com outros olhos”. Em 2011 fez o curso básico de fotografia do CUCA e então começou a fotografar profissionalmente.

Mas Ana considera a fotografia muito mais que uma atividade profissional. “Gosto de expor minhas emoções, angústias, alegrias através das imagens e também de sentir as emoções das pessoas retratadas por mim. Percebi que eu precisava ser fotógrafa, não tinha muita escapatória”.

Fotografia de Ana Reis

Fotografia de Ana Reis

Embora rejeite a ideia de uma fotografia tipicamente feminina, Ana Reis considera a importância do olhar das mulheres na arte fotográfica: “acho que as mulheres, por suas vivências e experimentações num mundo tão machista, tendem a trazer um olhar diferente dos homens, cis e hétero, principalmente, com questões e expressões de mundo distintos. A arte que o mundo conhece é majoritariamente branca, masculina e hétero, as mulheres foram vistas por muito tempo como musas e invisibilizadas no meio artístico. Desde o início da fotografia várias mulheres se destacaram com trabalhos incríveis, porém, até hoje muitas são esquecidas pela história. Recentemente, por exemplo, houve uma grande polêmica com o Prêmio do Instituto Mario Cravo Junior, em que na primeira fase selecionou 10 fotógrafos, entre eles só uma mulher, num júri composto apenas por homens brancos. Infelizmente não é um caso isolado nos grandes prêmios e eventos de fotografia”.

“Se afastar de narrativas fotográficas que hipersexualizam esses corpos”

Entre as preocupações presentes em seu trabalho, está a tentativa de ter “preocupações, cuidados e principalmente empatia que muitas vezes os homens cisgênero não compreendem”. Diz ela: “Buscar contar a história de mulheres e as complexidades que atravessam essas histórias, discutir através das imagens sobre identidade, sexualidades dissidentes, aceitação, autoconhecimento, buscar mostrar o corpo feminino de modo natural e se afastar de narrativas fotográficas que hipersexualizam esses corpos, tudo isso são formas de representatividade que são importantes pra nós, mulheres, e a fotografia é uma linguagem incrível para isso”.

Fotografia de Ana Reis

Foto de Ana Reis

Fotografia de Ana Reis

Atualmente, Ana Reis é professora de fotografia na sua primeira escola – o Centro Universitário de Cultura e Arte de Feira de Santana. “É sempre lindo o retorno que as pessoas me dão quando me dizem as sensações que sentem ao ver meu trabalho em exposições ou mesmo nas redes sociais, e ouvir as interpretações ou outros sentidos que muitas vezes nem eu tinha pensado”, diz ela sobre um trabalho que transita (ou se confunde) entre se expressar e se entender: “meus projetos autorais me permitem abordar minhas questões ou externar sentimentos, angústias, e isso é muito incrível pra mim. Me permite colocar tudo pra fora, muitas vezes funciona quase como um diário que tá ali disponível sempre. Acho que por isso faço tanto autorretrato em meu trabalho, porque muitas vezes as sensações são muito íntimas e eu não vejo uma forma melhor do que contar com meu próprio corpo”.

Manuella Albertine

Fotógrafa feirense Manuella Albertine

A fotógrafa feirense Manuella Albertine

Já a fotógrafa Mauella Albertine diz que nunca escolheu ser fotógrafa – ao que parece, a fotografia foi lhe conduzindo ao trabalho profissional que desenvolve hoje em dia: “eu sempre gostei muito de me fotografar, de fotografar minhas amigas e primas… e assim eu fui indo”.

Foto de Manuella Albertine

Foto de Manuella Albertine

Albertine considera a presença das mulheres na produção fotográfica uma ruptura de paradigma: “é muito importante ter mulheres na cena de uma área que sempre foi voltada para o público masculino. Precisamos falar que o olhar feminino é completamente diferente e mais sutil que o olhar masculino”.

“Os homens têm muita dificuldade de fotografar mulheres”

Na prática, segundo Manuella, os homens possuem limitações para realizar trabalhos que representem as identidades femininas: “eu percebo que os homens têm muita dificuldade de fotografar mulheres, principalmente se for um ensaio mais intimista ou sensual”.

Foto de Manuella Albertine

Foto de Manuella Albertine

Ela lembra que muitas mulheres se sentem mais à vontade sendo fotografadas por outras mulheres: “é nítido que, em alguns casos, várias mulheres se sentiram inibidas ou desconfortáveis por estarem sendo fotografadas por um homem”.

Manuella Albertine comemora o espaço que as mulheres vêm conquistando na fotografia: “nós, mulheres fotógrafas, conseguimos um respaldo muito grande na área, por sermos boas no que fazemos”.

Ananda Nunes

Fotógrafa Ananda Nunes

A fotógrafa Ananda Nunes

No caso de Ananda Nunes, a relação com a fotografia remonta aos tempos de infância: “meus pais tinham o hábito de registrar momentos cotidianos e revelar fotos para guardar em álbuns. De vez em quando sentávamos todos (meus pais e meus irmãos) para revisitar aquelas fotos e lembro que para mim era sempre um momento mágico… Além disso, eu tenho uma tia que é artista plástica e que também fotografa. Durante a infância ela produziu diversos ensaios meus e dos meus irmãos. Eu sempre gostei de tirar foto, sempre fui a pessoa da família escolhida pra essa função. Quando fiquei adolescente, fiz vestibular para Farmácia, comecei a cursar, mas nunca me identifiquei. Um dia, conversando com essa tia ela disse que, olhando meu Instagram, percebeu que eu tinha um olhar fotográfico muito bom. Naquele dia, algo ligou dentro de mim. Eu comecei a estudar fotografia, me apaixonei e entendi que era isso que queria para minha vida”.

“Ao corpo feminino foi dado um lugar: da sexualização, da objetificação, da servidão”

Ananda também problematiza o fato de que a fotografia, como ocorre em grande parte dos lugares da nossa sociedade, é majoritariamente ocupada por homens, havendo uma necessidade política de ocupação e conscientização das mulheres nesse campo artístico: “ao corpo feminino foi dado um lugar: da sexualização, da objetificação, da servidão. De maneira geral, o olhar de um homem para esse corpo está impregnado de condicionamentos e essa representação do feminino tende a refletir e reforçar esses padrões; enquanto o olhar de mulher vem de um lugar de identificação, de pertencimento. Desse modo a representação do feminino tende a questionar e desconstruir padrões a respeito desse corpo e do lugar que ele deve e pode ocupar”.

Foto de Ananda Nunes

Foto de Ananda Nunes

Ela revela que a fotografia transcende a realização profissional: “esse trabalho tem trazido muitas descobertas para mim, principalmente sobre confiança e liberdade. A fotografia é meu lugar de aprendizado no mundo”.

Foto de Ananda Nunes

Foto de Ananda Nunes

Nos ensaios com mulheres, os sentidos da fotografia são expandidos: “quando fotografo uma mulher, a intenção é que, na troca que ali se estabelece, o ensaio seja uma experiência, que ela possa se ver de uma outra maneira, entendendo que seu corpo é sua morada, é instrumento de conexão com o mundo e é também um corpo político”.

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Ana Reis, Manuella Albertine e Ananda Nunes estão no Instagram.